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luiz ruffato


estação das águas

 

 


Estropiados, os pés afundam na areia podre do braço-do-rio. O silêncio de fim-de-tarde de dezembro só o corrói o revolteio da passarinhama em seus curtos vôos pelas grimpas das árvores e o chuá-chuá das águas embrutecidas que carreiam tumultuosas galhos e troncos. Ao longe, ê-ê-ê da molecada jogando pelada, cicio das mulheres recolhendo roupa do quarador, ííin-nhô! de uma mãe conclamando o filho, vrum de um carro, risos abafados... De coque, Caburé cafunga, doloridos lanhos nas costas, braços, pernas, rosto, que o pai, quando zunia a tala-de-couro, nem de desguiar a mão cuidava, acertasse onde, contrariando a dona Fatinha que, antepondo-se, objetava, “Zé, você ainda aleija esse menino...” Não que renunciasse a bater, tinha nervos, mas sua cartilha graduava beliscão, puxão-de-orelha, lambada de vara-de-marmelo na bunda e, nas gravidades, coça de corrião, pois reconhecia em Isidoro merecedor, mas nunca chutes, pescoções, murros – tapa na cara então, nem pensar, “fustiga a vergonha do outro”. Rueiro, o zureta escapava, concubino da arte, esbranquecendo os cabelos da mãe, enjerizando o pai. Com os “desencaminhados” do Beco enfrentou os metidos da Vila Teresa de Baixo, numa guerra de atiradeiras, paus, pedras, porrada – deram parte na polícia, por alguns tempos baixaram o facho. Negociou o saquinho de bilosca, o finco do pisse-pisse e o pião, criancices, para adquirir do Gildo, de segunda-mão, um jogo-de-botão do Vasco – Andrada, Fidélis, Brito, Renê, Eberval, Alcir, Buglê, Luiz Carlos, Nei, Valfrido, Acelino. Entreteve-se. Mas logo em-bando invadia a Chácara para jogar bola, brincar de pique e roubar jambo, fruta-pão, abacate, carambola, jaca, pitanga, manga – impaciente, o Amâncio avisava, “Da próxima vez...”. Interesseiro, recolhia chumbo e cobre e bronze e garrafas e papel para o ferro-velho e os caraminguás tornavam fichas de totó e sinuca – e no botequim do Zé Pinto emaranhava-se no tempo. Tomou pau na quinta série e, arrependido, jurou-de-pés-juntos aprumar; domingo à tarde, antes da matinê, exibia para troca, à porta do Cine Edgard, Cheyenne, Gunsmoke, Comanche, Tex, Cavaleiro Negro, Flecha Ligeira, Coyote, Zorro, Durango Kid, que só o faroeste agora lhe cativava. Mas, devasso, levou uma surra do dono de uma égua, que barrancava nos pastos do Beira-Rio; outra, do pai, flagrado fazendo bobagem com o Lucas da dona Eucy. “Meu Deus, onde foi que eu errei?, onde, meu Deus?”, dona Fatinha se desesperava, lastimando arqueada em alinhavos e arremates, medições e provas, o ta-ta-tá da máquina-de-costura que o embala, que o desperta. O remorso devorava-lhe o fígado, não pretendia magoá-la jeito-maneira, queria-se bom, comportado, obediente, para que se orgulhasse dele, como da irmã, e determinava-se, daqui pra frente!, mas um assobio convocava-o, distraindo-o, um pé-de-vento sob a janela instilava a curiosidade, “Vamos, Caburé!”, e a promessa murchava, empurrando-o ao encalço do chamado da rua, livre, selvático, para devolvê-lo entardecido, cabisbaixo, ao jugo daquele olhar desensofrido, fita-métrica pendurada do pescoço, exausta carretilha na mão, “Ô meu filho, te procurei por tudo quanto é canto...”. Derrotado, admitia-se mau, indigno, desprezível, “Preocupa não, mãe, já comi na casa da dona Marta”, mentia, para rolar pela noite o estômago vazio, intentando expiar a desgraça que o oprimia, e martirizava-se recordando o dia em que ela amarrou-lhe um pano embebido em álcool no pescoço para curar a tosse-de-cachorro e juntos percorreram as horas, a mãe a moldar panos, ele a imaginar-se herói mascarado do Velho Oeste; ou as madrugadas em-claro em que velava sua febre de-variação; ou quando, paciente, arrancava um a um, agulha esterilizada nas brasas do fogão-de-lenha, bichos-de-pé e estrepes de seus pés escalavrados – e então cogitava freqüentar missa aos domingos e abdicar para sempre de algo que apreciasse muito, mariola, calango, brovidade, mas longos e enfadonhos eram os sermões e, esganado, zonzeava só de pensar no jejum... Castigava-se, no entanto: varava manco a cidade ponta-a-ponta, o quichute estrangulando os dedos destroncados, suando suas imundícies todas. Mas no intervalo da aula mão-em-mão surgia uma revistinha-sueca, na saída um atrevido afrontava-o, no retorno para casa deparava o pai ridiculamente bêbado no botequim do Gérson, na boca da Ponte Nova – e sucumbia às tentações. Por mor dos pecados, desejava, do fundo do coração, que aquela “íngua”, como dizia às vezes nervosa a mãe, morresse, e só de essa idéia relar seu pensamento antevia-se condenado à eternidade do inferno, em-valendo os ensinamentos do catecismo da dona Iolanda – “Quinto mandamento: Honrar pai e mãe; sexto mandamento: Não matarás, sétimo man”. Como, porém, camuflar o ódio que peçonhava seu sangue? Como ocultar as manchas roxas, ervas-daninhas semeadas por mãos que indistinguiam bicho e gente? Como respeitá-lo, descendo trôpego o Beco, chegando carregado da Rua a desoras? Como, se por-tudo-por-nada estranhava-se com a mãe, envergonhando-a na frente das freguesas com sua ignorância, sua estupidez, sua valentia? Fugir, talvez, quem sabe, a solução – e assentou o azul da manhã no fundo do embornal, pão-com-manteiga, biscoito-de-maisena, vidro de água, e galgou discreto as escadas do Beco, resoluto, a garganta latejando uma antecipada saudade. Sentiria a ausência da turma – Vicente Cambota, Gilmar, Gildo, Luzimar, Jorge Pelado –, até a reclamona da Teresinha faria falta, mas necessário escapar, não mais suportava afligir a mãe com a sempre incapacidade de se desviar do mal e ouvir suas queixas, “Ah, Isidoro, não sei quem você puxou!”, “Ah, Isidoro, você ainda me mata de tristeza!”, “Ah, Isidoro, não sei mais o que fazer!”. Já que redundavam inúteis seus esforços, assumiria de vez a condição de renegado: nunca mais sentar numa carteira de escola, nunca mais escovar os dentes, nunca mais tomar banho todo dia e, principalmente, nunca mais apanhar do pai, sentir o hálito azedo de cachaça e cigarro nunca mais – adeus, adeus, que já nada o demoveria. E, para cortar caminho, penetrou na Chácara por um buraco na cerca, evitando topar conhecidos e desviando os lugares que jamais iria rever, para que futicar sua dor?, não volto, pronto! No campinho, estendeu-se no chão e, observando distraído os urubus, pontos negros quase imperceptíveis planando por entre as ralas nuvens de setembro, mastigou os biscoitos-de-maisena. Depois, contornou o Bairro-Jardim, cruzando ao largo da Caixa-Dágua, e tomou o desusado atalho para o Paraíso. Na virada do morro, recolheu-se fatigado sob os eucaliptos, lá embaixo a Industrial, a Ponte Velha, a torre da Matriz, a Ponte Nova, a Cadeia, o esqueleto do hospital, a Pedreira, a curva do rio imóvel – e o silêncio cerrou seus olhos. Sobressaltou-o o apito da fábrica, dez para as dez, zumbem pelas ruas enxames de bicicletas. A essa hora, Zé Pinto cochila ao sol, sob o pé-de-amêndoa, em frente ao botequim, mosquitos lambem as quitandas destampadas no balcão; seu Antônio Português esfrega o passeio da Mercearia Brasil, calças arregaçadas; cismado, Zunga se esgueira, o bloco de anotação do jogo-do-bicho enfiado no cós-da-calça, sob a camisa; Hilda do Zito Pereira refoga a couve, manhosas meninas de nariz estilando agarradas às pernas; dona Zulmira carrega um caldeirão-de-comida para o seu Marlindo; debruçada no muro, dona Olga relata outra noite sem dormir, passos, conversas, latidos, miados, pios, “Tudo incomoda, Sá-Ana, tudo, estou ficando doida!”; o pai acorda, muda de roupa, sai atrás do Zé Preguiça e do Presidente para fazerem nada juntos; a mãe aguarda dona Filhinha cobrir os botões de um vestido-debutante; a molecada vagabundeia – ah, a cara deles quando souberem! A mão explorou o embornal e descobriu, abismado, que a água entornara do vidro, encharcando o pão-com-manteiga. Fora-de-si, levantou-se, xingou, bicou a quaresmeira, a raiva deliberou que ainda assim marcharia. Em passos decididos retomou o caminho, mas na primeira curva divisou, direção contrária, um-alguém, de-branco cabeça-aos-pés, chapéu-de-palha, foice equilibrando-se no ombro parecendo acenar para ele, lembrou, assombrado, justo ali armara-se uma tocaia, e, esbugalhados os olhos, eriçados os pêlos, adentrou de chofre a casa, assustando a mãe, que suspendendo um momento o pedal da máquina-de-costura ralhou: “Ô meu filho, te procurei por tudo quanto é canto... Onde você se meteu? Vai comer, vai, antes que esfrie”. Entendeu como aviso o golpe – e arrumou para vender picolé com o Fábio, do Beira-Rio, que os fabricava redondos para uma fiel freguesia. Serelepe, andou, de-cá-para-lá, caixa-de-isopor trançada no peito, “Aê o picolé!”, ajuntando pratinhas, orgulhoso. Empreendedor, cruzou, confiante, o pontilhão da Ilha. “Amendoim! Leite! Coco! Limão! Abacate!”, apregoava, distante ainda do aglomerado de quartos, quando o abalroou o Murrudo, “Racha fora daqui, moleque!”, “Não estou fazendo nada...”, alegou. O leão-de-chácara, atenazando-lhe o braço, “Racha fora!”, repetiu. Escutou, então, “Faz isso com ele não...”, desacreditando, “Pai!...”, em-vinha ele tonto, voz engrolada, salvador. “Ô Zé, você sabe a lambança se a polícia pega um de-menor aqui...”, o Murrudo grunhiu, “Eu sei... Deixa... que eu resolvo isso...”, afirmou o Zé Bundinha, e virando-se para o filho berrou, “Ô bosta!, o que você está fazendo aqui?”, “Vendendo picolé...”, “E aqui é lugar disso?, heim!?”, repreendeu-o, sacudindo-o, “Heim!?”, “É que...”. Intimidado, quis correr, atingiu-o um pontapé na bunda, destampando a caixa, igrejos picolés rolaram na poeira. Ligeiro ergueu-se e, a-galope, tomou rumo do Beira-Rio, escapulindo da torrente de gargalhadas que mordendo-lhe os calcanhares ecoava em-dentro da cabeça. Por uns tempos negacearam, mudos, cada qual ciliciando sua falta, até, alertado pela anarquia, “Ai meu deus do céu, esse menino ainda acaba comigo!, Ai que não sei mais o que fazer!”, da mulher jogada no degrau da entrada da casa, “Em tempo de levar um tiro!”, inteirar-se do distúrbio, o Isidoro pego roubando manga no quintal do maluco do seu Simão, “Em tempo de levar um tiro, minha nossa senhora!”, e vociferar, “Tudo tem limite! Eu rebento esse filho-da-mãe!”. Avançou ao batente da porta da cozinha, tomou da tala-de-couro e desatinado caçou-o, debaixo das camas e em cima dos telhados, bradando, “Cadê o desgraçado? Cadê o desgraçado?”, até localizá-lo encolhido dentro do guarda-roupa da Bibica, de onde arrancou-o, arrastando-o pelo braço, “É só desgosto, esse capeta!”. Então, passou a espancá-lo, e com tal violência que, apiedados, os vizinhos suplicaram, “Chega, Zé, Chega, que você mata esse menino”. A dona Fatinha buscou atracar-se com ele, mas, impelida contra a parede, esfolou braço e joelho, recolhida à cama a poder de maracugina. Desceram Zé Pinto e Zé Preguiça e aplicaram-lhe uma gravata, e as mulheres enfurecidas socaram-lhe a cabeça para que largasse o Isidoro, “Solta!, Solta!”, que num átimo desapareceu. Estropiados, os pés afundam na areia podre do braço-do-rio. O silêncio de fim-de-tarde de dezembro só o corrói o revolteio da passarinhama em seus curtos vôos pelas grimpas das árvores e o chuá-chuá das águas embrutecidas que carreiam tumultuosas galhos e troncos. Ao longe, ê-ê-ê da molecada jogando pelada, cicio das mulheres recolhendo roupa do quarador, ííin-nhô! de uma mãe conclamando o filho, vrum de um carro, risos abafados... De coque, Caburé cafunga, doloridos lanhos nas costas, braços, pernas, rosto.
 

 

 

LUIZ RUFFATO é formado em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Após ser, entre outras coisas, pipoqueiro, caixeiro de botequim, jornalista, sócio de assessoria de imprensa, vendedor de livros autônomo, voltou ao jornalista, profissão que exerce até hoje. Publicou Histórias de remorsos e rancores (1998), (os sobreviventes) (2000), Eles eram muitos cavalos (2001), romance pelo qual recebeu o Prêmio APCA e o Prêmio Machado de Assis, além de organizar as antologias 25 e + 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2005).

 


 

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