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o novelo de odradek | victor paes


em defesa da pedra bruta
 

 

A arte é um dos grandes articuladores dos mundos em que vivemos, e muito se discute se registrando, resgatando ou reinventando. Independente de definições, assume sempre, sob qualquer forma, na família de nossos entes assombradores, o papel daquele tio espirituoso e infantil que destitui algumas lógicas dos adultos. Infelizmente, e por isso mesmo, assume esse papel como um membro inconveniente da família, relegado a apenas distrair as crianças. Essa ingratidão, apesar de mágoas, o libertaria para esbaldar-se totalmente e exclusivamente com as crianças. No entanto, a ordem vigente é sempre tentar reunir toda a família. Então, ele corre pela casa, comentando freneticamente sobre a temperatura ou perguntando, muitas vezes aos berros, nomes de personagens de uma novela que não acompanha. Nós acabamos órfãos desse tio, ressentidos, e ele acaba sem a atenção verdadeira de ninguém.


Mas não há por que termos pena de nós mesmos. Pois “as pessoas na sala de jantar” já têm tanta pena de nós, que nos constroem jardins de infância. Nós brincamos de forma tão compenetrada, que eles têm medo de que acordemos seus mortos.


Na arte, qualquer deleite é legítimo. O que faz a diferença é o tipo de reverberação que cada obra causa nos apreciadores. É o quanto a obra se torna uma permanência no indivíduo. Mas, em uma época em que os medos se cristalizam em gritos, o que importa é gritar e estar-se com os pulmões limpos, para rapidamente voltar-se a respirar o ar da própria sanidade. E quanto melhor quando se “aprendeu” algo, quando se “ouviu” um conselho (como se alguém realmente ouvisse conselhos, e que todo conselho não fosse apenas uma formalidade confortável daquilo que já se está esperando ouvir). Não há que se ter pena do diretor de cinema que, em meio a todo o aparato de clichês que contabilizou utilizar, investiu em alguns momentos de inventividade e fez com que seus milhões de espectadores saíssem das salas reclamando o dinheiro que gastaram. Não há que se ter pena dos escritores que acham que seus livros de linguagem tão acessível alcançarão mesmo a todos quando as escolas conseguirem incentivar a leitura nos pequenos ignorantes desde ignorantes pequenos. Não há que se ter pena dos compositores que acreditam que suas letras acabam sendo mesmo alguma coisa mais que notas musicais. E por que tanta falta de compaixão? Porque ninguém merece pena. A pena é mais um embuste. E, no entanto, os adultos continuam tendo pena das crianças...


O embuste fica evidente quando a pena só dura até um filho anunciar que é um artista. Pois isso não se torna uma realidade quando ele diz, e sim quando os outros dizem. Quando os outros entendem que ele diz as coisas como artista. Pois quando, como artista, opta por não dizer as coisas, mas desdizê-las, sua arte é “para si mesmo”. O costume de objetos acabados é tão grande, que não há mais tempo para as pedras brutas. Alguém já tem sempre que tê-las acabado. Mas apenas a pedra bruta denuncia as distrações disfarçadas nos enfeites da casa. Nesse ponto a arte se tornou o maior empecilho a si mesma, revertendo a atenção, componente de sua essência, em um artifício de fuga: as obras são tão “belas”, que não atrapalham o olhar a paisagem. E o artista que atravessa isso “não é conveniente” (em uma expressão ainda de séculos passados).


Pedra bruta não é necessariamente secura, nem ofensa. Muitas vezes secura e ofensa são resultados de altas sofisticações. Pedra bruta é um estado de simplicidade. Mas aí está a crueldade dos misericordiosos: o simples hoje não é mais o óbvio, já que o óbvio (vide Nelson) ninguém vê. O simples é o aceitável. E, ao contrário do que se pode imaginar, pouca coisa hoje é aceitável: as coisas aceitáveis se parecem muito umas com as outras, o que faz com que o aceitável seja realmente pouco. O inaceitável está em qualquer lugar onde está o aceitável, sorrateiramente. Mas não é aceito por ser bruto. A simplicidade não pode estar apenas naquilo que produz e reproduz lágrimas. Qualquer choro é resultado de uma complexidade de sentimentos. Qualquer reconhecer-se em cena é resultado da complexidade de inconsciente. No fundo, tudo é complexo. Então, não há como fugir disso. Cabe à arte lançar mão de toda complexidade possível da pedra bruta. Esculpir-lhe tantas arestas, que seja intolerável que tenha sido esculpida. É isso que, inconscientemente, se espera: por mais enigmática, uma pedra súbita, cravada em cada realidade. No entanto, busca-se soluções para esse descontentamento no próprio ambiente hostil, em um emaranhado de preconceitos e mistificações, que são, enfim, a única coisa que, pela força da repetição, faz-se uma permanência nos indivíduos. E mesmo quando uma obra combate esses elementos, apenas alimenta uma certa vontade de combatê-los, pois o ambiente é repleto de armadilhas para as sanidades e o medo é grande. Vive-se, então, pela esperança de amores perfeitos, de atos de heroísmo, de alcance de beleza e de saciedade. É o almoçar e jantar, em família, receitas temperadas com vento. A arte, por si mesma, não possui a função de “salvar as famílias”. Mas a pior função que pode assumir é a contrária a essa. O tio, de apenas divertido, passa a se maquiar de palhaço, esse ser colorido, mas assustadoramente ambíguo. Talvez apenas por isso, por estar em dívida, devesse assumir algum tipo de luta. E, quase sempre, apenas a pedra bruta promete algum sangue real, em especial por suas arestas pouco visíveis...


No fim, que tipo de sentimentos merece o tal artista que se preocupa ainda em ser inconveniente? Ele não pode ser condenado por fazer apenas aquilo que sabe fazer. Pois em matéria de boa fé, é tão perdoável quanto muitos dos que deixam de ser “amadores” (palavra de Clarice) para alimentar as prateleiras. Na verdade, só se tornam alvos de julgamento quando tocam em feridas, o que é muito fácil: aquele por negar, estes por afirmar. Institui-se a guerra, mãe de todas as fomes. No entanto, entre sobreviventes, só se salva aquele que ri. Aquele cujas dores das próprias feridas são tão intensas, que ri. Que cogita o não ter lutado, o ter causado as próprias feridas. Que não leva a luta a sério e retorna para casa, para as crianças. Para ele nada disso é sério, família, penas, pedras brutas... Pois nem as vê, de tanto que fazem parte de seu organismo. Vale-se, enfim, da mesma organicidade dos distraídos, que pode sempre ser fatal. Mas o faz (que pena) de corpo aberto.

 

 

 

VICTOR PAES é escritor, ator e professor. Além disso trava lutas diárias com a dramaturgia e com alguns gnomos. Foi premiado pelo Prêmio Jovem Artista, da Rioarte, com o texto teatral Os Cálices do Deus, que depois foi apresentado no Projeto Nova Dramaturgia. Foi publicado pela Editora Record, na coletânea do Prêmio Nossa Gente, Nossas Letras, da Oldemburg. Estará lançando em abril, pela editora Confraria do Vento, o livro de poemas O desvelar códigos e a boca intransferível.

 


 

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