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uma idéia
manfredo score
1
A mentira, de que aquela montanha foi sempre uma imensa carruagem
estacionada, tinha sido tão ferozmente reescrita pelos copiadores, busca
de fazer saltar alguma palavra de verdade em uma discrepância acidental,
que todos os moradores da cidade tinham já a sua cópia. Todas
absolutamente iguais.
2
Um dia, resolveu-se, decisão quase unânime, mover a montanha.
Muitos dos contrários, obrigados a contribuir com algum animal ou, ao
menos, ferradura e corda, protestaram com ferros destemperados, sisais
úmidos ou jegues asmáticos. Não imaginaram estarem dando o mesmo que
aqueles das contribuições sinceras. Uma delas, das mais sinceras, foi a de
Jaime, moleque sincero e entendedor de montanhas. Contribuiu com seu
cachorro, que, abanando o corpo inteiro, sem um único latido, diluiu-se
entre os outros animais quando a montanha se moveu e nunca mais foi visto.
E Jaime entendeu um pouco mais de montanhas.
3
Pois a montanha realmente se moveu. Cedeu à violência da rede ruidosa de
bichos a lhe estimular o chão. Começou a se abrir pela base, entendeu-se
uma roda, depois outra e mais duas. Ouviu-se um violento ranger de animal
sendo arrastado de sua jaula. O som obstruiu os ouvidos, trincando
centenas de dentes. Um metro movido, a montanha parou. E o empenho final:
na bateria de cascos, desfez-se até o topo e, misturada à avalanche de
pedras, uma avalanche de centenas de imensas rodas de carruagem veio
enterrando casas, bichos e pessoas. E enterrando definitivamente a palavra
“carruagem” em cada texto da cidade.
4
Até hoje, nas ruínas das casas engenhosamente construídas nas rodas,
nenhum arqueólogo encontrou nenhum dos textos e não se sabe, sinceramente,
se existiram.
MANFREDO SCORE, natural de Guarulhos (SP), é escritor, crítico,
teórico da arte, artista plástico e filósofo. É um dos mais fecundos
escritores brasileiros produzindo em língua estrangeira (e por incrível
que pareça, inédito no Brasil). Autor de romances premiados como Tramonto:
Il Carnato del Cielo e @, e amigo de figuras como Osman Lins e Pasolini,
seus livros, em maior parte escritos originalmente em italiano, foram
traduzidos para diversas línguas. Publicou também livros infantis em
francês e pornografia em inglês, que, por bom senso dos tradutores,
permaneceram no original. Este conto, além de inédito, é seu primeiro
trabalho publicado escrito originalmente em português.
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