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a arte da astúcia | ricardo pinto


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Meu nome é Ricardo. Sou alto, gordo e míope e, como tantos homens altos, gordos e míopes tenho o hábito dos livros. Dizem que sou também inteligente, o que, sendo motivo de vaidade e de honra, não me exime da melancolia específica que algumas inteligências apresentam. Quando meus colegas e eu tivemos a idéia de fundar a revista Confraria, ficou mais ou menos acertado desde o início que em todo número cada um publicaria um texto, um pequeno ensaio ou artifício em aquilo que eu, pessoalmente, concebi como um privilégio de editor. Só depois, quando fui obrigado a parar e pensar o que poderia oferecer além de um comentário mais ou menos técnico sobre literatura, é que caí na real. Não que considere os textos sobre literatura algo sem importância; ao contrário, minha vida se passa mediada por eles e, com exceção da própria literatura, são minha maior fonte de prazer intelectual. Apesar disso, uma intuição um pouco patética exigia que fizesse outra coisa.

Um dia pensei em Montaigne, nos ensaios que ele criou misturando sua vida e a dos muito outros que o cercaram ao longo dos anos, no solo da vida e no das bibliotecas. Seu nome não me saiu da cabeça, e fui obrigado meio a contragosto a admitir que era exatamente esta forma de ur-ensaio que eu gostaria de praticar aqui.

Penso em Montaigne, este Dom Quixote francês abandonado aos vícios mais degradantes, os livros, a solidão e um delírio de lucidez que, creio, foi tão certo e intenso que, ao contrário de Dom Quixote, não pôde ser curado através da loucura. Também procurava a sabedoria, Montaigne, o que me parece a maneira mais nobre de desperdiçar os anos. Mesmo quando falava de heráldica ou das mudanças da moda sabia imprimir o ritmo certo ao seu pensamento, nem muito lento, nem muito nobre, nem muito longo, mas sempre um ritmo exato, perfeito e atento como a chama das velas que provavelmente o observavam em seu ócio de escritor, e que, enfim, só tinha esta fluidez magnífica porque era intransferível e dizia sempre de si.

Compartilho o vício dos livros e da solidão, mas percebo que estou muito distante de sua lucidez — isto, talvez, mais do que qualquer arcano do talento ou da erudição é o que estabelece minha inferioridade em relação ao meu padrinho. Em um tempo em que os homens eram tão loucos e passionais que se viram obrigados a inventar a palavra utopia, e em que a Europa foi recriada e sacudida não uma, mas um punhado de vezes, Montaigne se propunha a ser lúcido, o que imagino seja uma forma de auto-crueldade, ou talvez de desprezo ou desespero para com o mundo. Agrada-me este retrato de Montaigne como um homem cruel, com uma virilidade silenciosa que está na base da ironia que nos legou. Então, se tivesse que definir minha atividade aqui, diria que busco esta lucidez.

Para mim é difícil ser lúcido. Os meus óculos parecem ampliar a multiplicidade do mundo, já por si insuportável, e me distraio facilmente. Além disso convivo com fantasmas, que, embora sejam sempre um paliativo para espaços vazios, têm o péssimo hábito de exigir longas conversas e ouvidos resistentes. Não posso exorcizá-los, entretanto: a memória é uma coisa tão delicada que não consigo percebê-la como uma maldição, e acabo mimando-a como a uma filha. Às vezes, seus dedos de seda tocam meu ombro, e me encontro em outros lugares, ou então penso no futuro, e desenho e re-desenho as várias filigranas que povoam minha vigília. Ao contrário de Montaigne, que abusava despudoradamente de sua memória, eu sou uma vítima alta, gorda e míope da minha, um fantoche grande como um avestruz, se me perdoam o grotesco da figura.

Também não conheço a arte do desprendimento, e não sei renunciar a praticamente nada, a não ser através de duras batalhas que me extenuam e exigem longos descansos. Mesmo aquilo que pude abandonar às vezes retorna e me põe em um transe elétrico, que ao custo de alguma insônia consigo sanar. Sofro também do amor e da raiva, que, todos sabem, impedem a lucidez. Gostaria de dizer que evitam o cinismo, mas, pensando bem, se fosse este o caso seria melhor desistir logo de me tornar lúcido. Além de tudo, sou jovem, o que é o sinônimo mais exato para estupidez.

Como vêm, meu plano tem tudo para dar errado, e ainda que confie no poder do trabalho diligente para transformar as coisas, tenho de confessar que estou tão imerso em minhas particularidades que necessitaria de um esforço heróico para conseguir mudá-las. Poderia, é claro, contar com o passar do tempo, mas isto seria também uma desistência. Então, apresento minha solução para o impasse, e espero que possam reconhecer alguma graça no que direi a seguir.

Lembro que um dos temas preferidos de Montaigne é o afeto, do que deduzo que em algum momento ele terá sido tão louco e passional quanto seus contemporâneos. Convenhamos que passar desta paixão para um isolamento empoeirado em uma torre-biblioteca não é uma idéia agradável, por mais sedutora e confortável que possa ser a tranqüilidade de um domínio rural. Montaigne atuou em vários momentos como homem de Estado, o que torna este isolamento, após a paixão política, algo ainda mais próximo de um degredo do que de um retiro gracioso. No entanto, nos vários cacoetes que encontramos em seus ensaios, o rancor está ausente. Não confio que sua placidez venha da nobreza de caráter, pois os cínicos raramente a possuem. Tampouco acredito que fosse um covarde que entrou em paz com sua fraqueza, pois foi homem de guerra, comandante e espírito irônico, atributos de que se orgulhava e que são contrários à covardia. Minha tese é que o Montaigne público, guerreiro e estadista que percorreu a Europa, e lutou e matou, e foi preso e humilhado, e que se divertia quando jovem com putas ou com La Boétie e aquele outro, o sábio que fica me perturbando a mente desde sua torre, não chegaram nunca a entrar em acordo, mas passaram a vida em incontáveis armadilhas para tentar a vitória final um sobre o outro. Esta vitória nunca foi alcançada, porque a arma com que se davam estas batalhas surdas não foi nunca a disciplina, a convicção ou a fé, sempre valores que exigem a nobreza ou a covardia. Antes se combatiam como cavalheiros, e sua arma preferida era a astúcia. O grande brinquedo mútuo não era se destruir, mas se enganar mutuamente de uma forma constante e apaixonada.

Em certo momento de minha adolescência fiz como qualquer adolescente e me apaixonei perdidamente por uma garota, cruel e exuberante como costumam ser as adolescentes. Travesti-me de frango e corri atrás dela por todos os cantos, mendigando olhares, carinhos e declarações, que surgiam sempre, mas sempre insuficientes e incertos. Gastei meses nesta perseguição, e me gastei deprimido e desesperado, até que nos separamos. Sempre imagino o que teria faltado para conquistá-la, se nem presentes nem humilhações bastaram para mantê-la. Hoje penso que meu grande pecado foi deixar, como sempre deixei, que minhas paixões me movessem ou paralisassem em vez do contrário. Talvez se em algum momento tivesse feito com o corpo apaixonado que a buscava o mesmo que um artista faz com um fantoche, poderia tê-la seduzido. Ao menos teria sido mais interessante jogar minhas paixões entre nós do que deixar que elas me jogassem.

Esta capacidade de tornar a matéria de si e da própria vida em argila e se tornar artista de si mesmo é o jogo que Montaigne realizava, e quando o escritor evocava o guerreiro não era para tornar a escrita em guerra, mas para astutamente convencer o guerreiro de que era ele que escrevia. Do mesmo modo, se o estadista usava o equilíbrio do sábio era para que a diplomacia pudesse parecer transfigurada em razão. Isto, que pode ter a aparência de inconstância e de dissimulação, é a arte sutil da astúcia. Embora sempre estejamos enrolados demais na vida para que se pretenda unidade e sossego, podemos pelo menos dar um jeito de não nos implodirmos. Este é o jogo da literatura também, suponho. Eu não posso deixar de ser afetado por mim mesmo e pelo mundo, mas posso fazer com que meus afetos tenham a decência de serem meus escravos. É necessário saber torná-los personagens, e ditar suas falas, e ensaiá-los. Se esta astúcia não serve para curar feridas e adubar flores, pelo menos garante que feridas e flores sejam sempre renovadas.

Há inúmeros riscos nesta estratégia, o menor dos quais é o hábito de mentir para si mesmo. Mas, se de algum modo, este método da astúcia conduzir à lucidez, à compreensão trágica e serena dos próprios limites, vale a pena arriscar.


 

 

RICARDO PINTO é poeta e escritor, ou quase. Atua como professor, edita a revista Confraria e é sócio da editora Confraria do vento. É mestre em Literatura Comparada e teve alguns artigos e poemas publicados em sites e revistas, assim como um livro de poemas Amar o mar e outros poemas (2000). Conformou-se em ser alto e míope, mas luta angustiadamente para deixar de ser gordo.
 


 

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