|
|
lícia kelmer paranhos
uma leitura sobre o real na sociedade de massas
É indiscutível que em nossa
época sofremos terrivelmente os efeitos que as alteradas condições de
existência dos grupos humanos geraram. As transformações que isolam o
sujeito de tudo e de si mesmo, o isolam também de seu próprio tempo.
Impossível de ser apreendida pelos sentidos do homem dada a sua
desfiguração, medido pela dinâmica da produção das mercadorias, o tempo é
regrado pelas necessidades da indústria e também revertido em mercadoria.
“Blocos de tempo” são vendidos travestidos em lazer, cultura, sexo e
trabalho.
Sem, nem de longe, esbarrar em possibilidades de convivência e espaços
reais de experiências, o homem consome aqueles simulacros como lenitivo a
essa condição. Ademais, a realidade do tempo foi substituída pela
publicidade do tempo, e o que foi representado como vida real revela-se
como mais realmente espetacular.
Escassa em possibilidades autênticas, a vida vivida é ilusória,
historicamente deficiente, e o espetáculo de acontecimentos apresentados
para consumo não produz experiência naqueles que lhe assistem, além de
tornarem-se obsoletos a cada pulsão temporal.
Diante dos choques sensoriais a que se submete a cada instante, o
habitante urbano requer sempre mais e mais estímulos e desse modo, como
efeito contrário, ele adquire um comportamento blasé e indiferente a tudo
que o cerca. Não enxerga o outro e nem a si mesmo, sendo também incapaz de
dimensionar o que é passado ou presente, pois tudo é vivido
simultaneamente quando as distâncias espaciais se diluem: o tempo presente
sucumbe ao “poder mágico” da simulação, do espetáculo.
Real ou virtual, o sentido de tempo vivido é negociado nas culturas
contemporâneas. No ponto mais extremo, os limites entre real e ficção se
apagam, e o indivíduo se dissolve no mundo imaginário da tela, ou da
tecnologia. Se por um lado, a fugacidade e a imaterialidade desse cenário
apontam para o perigo do esquecimento, da perda da memória, por outro, não
há como reconhecer o tempo presente sem admitir que o perigo é inerente às
atuais formas de decodificá-lo. Em outras palavras, a ameaça do
esquecimento provém da mesma tecnologia produzida pelo homem para
justamente preservar sua memória.
A profunda ansiedade gerada por esse novo e obscuro trato com a velocidade
e com a desfiguração do espaço caracteriza esse estado de coisas. A
sociedade, simultaneamente, enquanto perde em extensão do presente, cria
cada vez mais informações, comportamentos, “visões de mundo” em vista da
aceleração cultural sem precedentes que caracteriza esses tempos atuais. É
inegável que o mundo circunscreve-se em redes cada vez mais densas de
espaço e tempo comprimidos, todavia é imprescindível compreender esse
processo no lugar de lamentá-lo.
A perda de referências que antes lhe garantiam equilíbrio gerou no homem
moderno uma sensação de pânico que o fez voltar-se a si mesmo. Protegido
pela sensação narcísica do culto ao corpo e ao consumo, o sujeito se
contenta em olhar para si ou, no máximo, para um restrito grupo com que
mantém alguma identidade. Em razão disso, o bem comum acaba perdendo para
o individualismo e o indivíduo se vê sem alternativas grandiosas. num
movimento narcísico em nome da sua exclusiva preservação. Desse modo, ele
se volta para o próprio corpo, e inventa um desenfreado interesse pelas
biografias, por relatos documentais, testemunhos, “blogues”, etc.. Caberia
então perguntar se esses produtos não corresponderiam à necessidade do
sujeito de individualizar-se ou distinguir-se em meio à massa humana? Não
estariam apontando para formas de garantir um espaço de ação e diálogo?
Não expressariam, finalmente, o desejo humano de ir mais devagar e
constituir algum tipo de antídoto ao esquecimento e à aceleração dos
sentidos?
Acostumada aos contrastes e ao ritmo sempre mais veloz das imagens e das
informações da mídia, a aceleração a que está submetida a vida material
impõe a necessidade de um novo código que responda a essa velocidade
compressora do espaço e do tempo humano.
Revitalizar o real diante da vida mediatizada pela tv, mídia e imagens
revela a perplexidade diante do mundo e necessidade de encontrar uma
narrativa que unifique ou mesmo que reintegre o indivíduo a um tempo que
ao menos se apresente parcialmente preenchido, isto é, todas essas
iniciativas não expressariam o desejo de distinguir uma âncora em uma
sociedade, cujo tempo e espaço se traduzem fraturados?
A questão é descobrir se a acentuada atenção das sociedades a fenômenos de
natureza “documental” não demonstraria uma exaustão daquela linguagem
tipicamente ilusória e espetacular, não serviria como antídoto às formas
deste tipo de entretenimento que dissocia o humano de si mesmo? A medida
de exaustão do que se conhece como “show da vida”? Ou, na verdade, seria
mais um fenômeno da sociedade de massas, um fetiche do mercado?
Andreas Huyssen é categórico ao afirmar que “não há nenhum espaço puro
fora da cultura da mercadoria”. Provavelmente, o esforço empreendido pelo
corpo social em busca de um real isento de operações discursivas e
retóricas, ou, em outras palavras, em busca de uma vida-real, se manifesta
como resultado de um encolhido presente, marcado pela regra da velocidade,
do lucro e dos prazeres efêmeros; e certamente esse esforço pode também
ser um viés resultante da indústria da cultura e das novas tecnologias de
mídia. Mas não há porque não ponderar sobre novas possibilidades que essa
mesma dinâmica convoca.
A profusão de inovações que envolve simultaneamente mudanças tecnológicas,
padrões de consumo, mídia, trabalho provoca na sociedade novas relações
com a temporalidade. Alguma coisa que resulte numa espécie de refreamento
de um “futuro que não mais nos inspira confiança”.
Os chamados reality-show’s, por exemplo, são programas característicos da
chamada “nova televisão” e se traduzem por evocar o real não ilusionista,
levando para a “telinha” a “vida como ela é”. Gravados ao vivo, apresentam
um caráter nivelador na medida em que possibilitam a todos , ou a qualquer
um, a chance de “estar no ar” ou a decisão sobre quem vai “estar no ar”.
Esse gênero televisivo, segundo a opinião de seu criador, John de Mol, é
muitas vezes incompreendido como o foi o “rock’n’roll [quando] aumentou a
distância entre jovens e adultos nos anos 60”, mas ocupa espaço promissor
no imaginário social, junto a outros produtos da comunicação de massa.
Especificamente se referindo ao programa Big Brother , seu criador ainda
aponta para o caráter que este apresenta de testar a capacidade humana. Em
suas palavras: “trata-se de um teste para descobrir quem você é e quão
forte consegue ser -- de verdade, não do jeito que você imagina ser”.
A despeito da relevância ou não dessas opiniões, de alguma maneira essas
formas retóricas do discurso cotidiano asseguram uma espécie de sensação
de pertencimento do sujeito e restituem laços sociais outrora esgarçados
pela dinâmica da sociedade. Não é de todo errado considerar que estas
expressões podem levar à criação de uma nova gramática do cotidiano, que
exclua formas mais comuns de ilusionismo, onde o real se apresentará em
sua concretude ou pelo menos como espelho de cultura do seu público.
Para tanto, em primeiro lugar a gravação ao vivo já o distingue de
qualquer outro produto, como no cinema, os documentários. O tempo no
cinema não é neutro e portanto, é marcado por um processo de manipulação
que ao espectador não se manifesta de modo claro. Em outras palavras,
sempre nessa perspectiva, o elemento ficcional está em jogo. Nas gravações
ao vivo unidas às transmissões ao vivo, o recurso do tempo é anulado, e o
que se vê é o tempo real. Mesmo considerando que qualquer produto dessa
natureza poderá sofrer intervenções técnicas, ou mesmo estéticas, a
televisão procura sempre apagar suas marcas. O que se apresenta na tela é
como se fosse literalmente real, a vida como ela é, o que reforça a
credibilidade, demanda essencial para o público em questão.
Desse modo, a premissa que se coloca é a verdade da imagem. Em uma
sociedade cuja cultura é fundada na visão, é incontestável a força
probatória daquilo que se pode ver “com os próprios olhos”. Mais que
outros discursos que necessitam ao menos de verossimilhança e coerência, a
vantagem das gravações ao vivo é seu imediatismo, que anula a distância
temporal, pois se dá em tempo real, e consequentemente, anula também a
distância espacial, pois o que é visto “é como se estivesse ali”.
Outros fatores importantes caracterizam esse tipo de transmissão. Cria-se
a ilusão de que não há um narrador, um intermediário. No caso de haver
interação entre telespectador e “produto”, esse pacto com o público
estabelece uma sensação de igualdade-não existem autoridades- “aquilo que
eu vejo acontece ali e acontece porque assim eu escolhi”. Sendo assim, não
se pode desprezar que diante da falência generalizada das instituições
sociais e numa outra perspectiva, do discurso público, é sensato a
afirmação de que este “espaço” carrega em si um traço forte de confiança,
credibilidade e democracia. O produto apresenta-se como o legítimo
discurso da verdade em meio à opacidade disseminada dos “refletores”, e
ocupa lugares institucionais de participação social já deteriorados ou
mesmo falidos, forjando comunidades imaginárias, laços sociais refeitos
nas inóspitas grandes cidades. Por fim, paradoxalmente, cria ilusões de
proximidade anulando as distâncias, estabelece a sensação de continuidade
temporal. De alguma maneira, apresenta uma fantasia sob medida para o
homem desencantado que vive sob as leis do liberalismo de mercado.
“Certas idéias nascem doces e envelhecem ferozes. Outras, já são ferozes
ao nascer” disse Borges. Revitalizar o real diante da vida mediatizada
pela tv, as mídias, e as imagens – como, então, nos conectar ante a
perplexidade em que nos encontramos? Se a ficção entra pelo real e
vice-e-versa, se faz necessário um novo realismo para vincular vida e
arte. Sem dúvida, o esmorecimento da experiência incita a busca por uma
autenticidade que se alie ao real e precisamente ao realismo. O interesse
pelas biografias, documentários, pelos testemunhos e “blogues” demonstram
um novo tipo de realismo que faz uma aposta na porosidade de fronteiras
entre o real e o ficcional, usando fortemente a narrativa do cotidiano,
que ou não é estetizado ou o é através de uma linguagem que traduz ao
mesmo tempo o “belo e a poeira”. O código realista se disseminou por meio
de avanços tecnológicos, adquirindo uma expressão global, e as novas
narrativas realistas estão pautadas nessa modernidade – que se instaura
sob a genealogia dos estímulos e seus vastos vocabulários. Como tentativa
de individualizar-se ou como fenômeno de mercado, de alguma maneira tudo
se insere no campo da cultura, e como tal, em seu movimento insidioso,
desloca sempre dos lugares artificiosos, alguma brecha de escape ao
fetiche, à reificação.
Lícia kelmer
paranhos é carioca, 40 anos. Professora de língua portuguesa e
literatura brasileira. Mestre em literatura comparada pela UFRJ.
Especialista no escritor sul-africano J.M. Coetzee.
voltar ao índice |
imprimir
|