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joão gabriel rosa de almeida o morfético promotor de oblivion e os habitantes da cidade madrasta
Só o presente existe no
tempo e reúne, absorve o passado e o futuro, mas só o passado e o futuro
insistem no tempo e dividem ao infinito cada presente. Não três dimensões
sucessivas, mas duas leituras simultâneas do tempo. Gilles Deleuze, A lógica do sentido
Cidades Mortas retrata a
estagnação sócio-econômica da região cafeeira do Vale do Paraíba, quando
da expansão do cultivo do produto, em fins do século XIX, para as terras
férteis do Oeste Paulista. As reflexões e denúncias do escritor foram
julgadas pelos areienses como insultos à cidade natal e sua população. Em
contrapartida, os relatos memoriais expressam uma carga emocional muito
forte, revidando o epíteto de “cidade morta”, inventado pelo escritor para
seus debiques ao município. Decretando o município mortiço, Lobato
condenava seus moradores ao estigma de mortos-vivos que perambulariam por
ruas fantasmagóricas.
Na subjetividade mnemônica,
alguns de nossos depoentes acreditavam que Areias seria uma “péssima mãe”,
mas uma “boa madrasta”, censurando supostos privilégios concedidos aos
forasteiros por esta, enquanto seus filhos areienses seriam deixados à
míngua. Para muitos deles, foram os auspícios da “madrasta” que facultaram
a sinecura da promotoria a Monteiro Lobato.
Na verdade, o jovem bacharel
desejava se casar com Purezinha, a filha do Dr. Quirino, seu antigo
professor, com quem jogava entediantes partidas de xadrez somente para
esperar o bolinho com café que a tímida pretendente vinha servir. Todavia,
era necessária uma promotoria definitiva. Lobato acionaria o prestígio do
avô, o Visconde de Tremembé, a fim de ser nomeado para uma comarca
próspera. Frustara-se, a influência do cafeicultor conseguiu apenas
Areias, localidade de que nunca ouvira falar e que a ele parecia não
existir.
A “cavação da promotoria”,
como Lobato definiu, deveu-se às relações de sua família com o Secretário
de Justiça e Segurança Pública do Estado, Washington Luiz. O assédio a
cargos públicos era uma prática recorrente entre os bacharéis das famílias
oligárquicas empobrecidas durante a República Velha.
A decadência urbana da comarca
assombrou Lobato: (...) Areias é uma calamidade. Só nela existem três
coisas que deixam saudades a quem sai: O Dr. Hermógenes [juiz], a cadeira
de balanço dos Müller e o banheiro do Sr. Carvalho [único que possuía
chuveiro]. A nossa vida aqui é curiosa; temos duas caras; uma para os areanos, outra para nós mesmos. Para aqueles, vivemos a gabar-lhes a
cidade, o povo, a vida social, etc; entre nós, quando ninguém nos ouve,
rompemos os diques do desabafo e damos para o diabo Areias, areanos e o
mais. (Cartas de Amor)
As narrativas memoriais dos
areienses assumem uma feitura mítica. O mito, conforme concebeu Roland
Barthes, em Mitologias, é uma fala, tal como uma frase ou súmula
narrativa, sendo uma criação discursiva localizada no mundo do discurso,
da ideologia e do poder. Os mitos têm a função principal de transformar
uma intenção histórica em natural, uma contingência ocasional e fortuita
em discurso com foros de eternidade, portanto, o mito possui um caráter
essencialmente conservador. Ele elimina a qualidade histórica das coisas,
que perdem a lembrança da produção de sua raiz nos acontecimentos vividos
para se transformar em fala e discurso. Logo, o mito é uma fala que
despolitiza, isto é, naturaliza os fatos, não os explica, deforma-os,
conforme as necessidades daqueles que se sentem impelidos a produzi-los.
Os relatos dos areienses
elaboraram um mito a respeito da estadia de Monteiro Lobato no município,
em nada favorável ao escritor, que sugerimos denominar de “promotor de
Oblivion”. Despreocupados com a historicidade do livro Cidades Mortas, os areienses naturalizaram as denúncias da decadência urbana na obra em
vilanias a Areias: As pessoas mais antigas não gostam dele porque Lobato
criticava muito a cidade (...) A cidade não merecia de maneira alguma,
afinal, ele foi bem acolhido aqui. Agora, o que ele ficou fazendo aqui eu
não sei. Eu acho que ele deveria ser uma pessoa doente, porque morou aqui,
começou a carreira aqui, fez a vida aqui e saiu falando mal de Areias. Eu
não entendo! (moradora Justina Elme, setembro de 2000)
O escritor é rememorado num
homem de feições horrendas, neurastênico, solitário, caçoísta, injusto,
excêntrico, preconceituoso, orgulhoso, insano e até mesmo morfético.
Conta-se que Lobato, quando deixou a comarca para herdar uma fazenda nos
recessos da Mantiqueira, por ocasião do passamento de seu avô, não poupou
Areias de seus debiques: (...) Vovó contava que vinha gente lá do Tabuão
pra cidade, de vestidinho de chita, com babadinho assim no meio da canela
e com lacinho de fita e duas rodinhas de ruge... nem era ruge, às vezes,
era papel vermelho. Vai ver que ele achou isso interessante. Sei que
quando foi embora daqui, então, vestiu as filhas de caipira, igualzinho à
gente do Tabuão, caçoando da cidade. Ele era crítico mesmo! Por causa
disso, o povo ficou com raiva dele. (moradora M.P., 82 anos, janeiro de
2003)
No outono de 2001, todavia, a
prefeitura municipal de Areias ergueu nos jardins da antiga cadeia
estátuas de Monteiro Lobato, do Jeca Tatu e das mágicas personagens do
Sítio do Pica-pau. Transcorridos dois anos, inaugurou-se uma biblioteca
pública batizada com o nome do autor. Houve um esforço do governo local
para festejar Lobato na categoria de escritor consagrado que produziu
alguns textos literários inspirados na localidade. A celebração
expressa-se nos nexos da memória oficial que enfatiza as qualidades
literárias do literato em detrimento dos sentimentos dos moradores: Não
concordo com a construção daquelas estátuas na cidade porque, primeiro,
Monteiro Lobato foi, simplesmente, um passageiro promotor público, que
nada fazia para honrar o cargo, e aqui vivia esperando o dia de amanhã
para se libertar do pesadelo que era Areias para ele; outra, Areias não é
o “Sítio do Pica-pau” para ficar expondo seus personagens e, por último,
essas estátuas espalhadas na frente da Câmara parecem estar representando
um presépio gigante, apagando a beleza do prédio. (Erika Evangelista,
agosto de 2001) A estatuária, embora tenha modificado a configuração espacial à qual a comunidade deveria adaptar-se ou submeter-se, não representou o esquecimento dos antigos arranjos materiais e da memória constituída pelo silêncio dos objetos exteriores que a cercavam. A imagem dos tempos de outrora continuava a subsistir. Os costumes locais resistem às forças tendentes a transformá-los. Assim, se muitos dos areienses parecem adaptar-se à saudação ao ex-promotor, sua desafeição não diminuiu e nem suas recordações se transformaram. Continuavam desejando relegar Monteiro Lobato ao oblivion.
João Gabriel
Rosa de Almeida é mestre em História Política pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Em sua tese, discute questões de memória,
projeção e narrativa. Para isso utiliza a figura de Monteiro Lobato, sobre
a qual realizou, dentro desses temas, uma inédita pesquisa, já em vias de
ser publicada.
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