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marcela medina
o sentido além da fronteira
Foi exibido nos cinemas em
2005, com grande sucesso de público e discutível sucesso de crítica, Sin
City – A cidade do pecado, um misto de filme de ação, aventura, suspense e
terror sanguinolento classificado como policial noir. Trata-se de uma
adaptação que muitos acreditam revolucionária de uma bem-sucedida grafic
novel de mesmo nome e autoria de Frank Miller, figura de referência nessa
linguagem, responsável pela modernização do Batman (da versão camp do
seriado dos anos 60, ele passou a Cavaleiro das Trevas) e co-diretor do
filme em que Sin City se transformou. A recepção de Sin City pela crítica
ilustra de maneira interessante a controvérsia que envolve a digestão de,
como diria Frédrica Jameson, um “artefato pós-moderno”. Ao lado de
saudações exaltadas a uma obra que corresponderia, finalmente, aos nossos
anseios por inovações formais, registraram-se alguns laconismos
satisfeitos em comentar... o apuro formal, sem entrar no mérito de algum
valor além ou através disso. Em outro extremo desconfortável, os
detratores já não mencionavam a violência – porque depois de Quentin
Tarantino isso se tornou anacrônico –, mas indagavam da adaptação dos
quadrinhos de Frank Miller um sentido que a justificasse como produção
artística, insistindo num olhar hermenêutico totalizador, sintetizado na
resenha divulgada pela agência de informações Reuters, em que se enxerga a
piada encenada pelo mundo de “corrupção e sexo desenfreado”, mas se
destaca o vazio e a decadência que tal caricatura mal feita representaria.
Ao mesmo tempo, enquanto Sin City aparece como fantasia adulta repleta de
apelo aos sentidos, recuperação estilizada dos sonhos de sexo e violência
de meninos reprimidos, soaria como impostura por trás da preocupação
formal que deixa de lado a recorrência a uma mensagem ou a um algo mais
que poderia ser discutido após a sessão.
A resenha da Reuters faria o delírio de Leslie Fiedler. Foi ele que saudou
a cultura pós-moderna como um tipo de manifestação que desafiava a crítica
especializada, que insistia em lançar sobre aquela produção um olhar
institucionalizado de grande arte, desconsiderando o fato elementar de que
a maioria das linguagens contempladas não se encaixava mais nesse rótulo.
Para Fiedler, uma das características seminais da cultura pós-moderna
seria justamente seu sentido de contramão em relação à cultura instituída.
Se a última é legitimada pelos críticos, que então irão prescrevê-la para
o público, ou proscrevê-la para sempre, o sopro de ar fresco pós-moderno
consistiria em fazer o caminho inverso: o público consome e consagra; a
crítica sucumbe, e acaba sendo forçada a considerar. Tachar a cultura
pós-moderna de decadente ou esvaziada simplesmente por não obedecer mais
aos parâmetros elitistas do discurso modernista, ou sob a alegação de que
o pós-modernismo é ruim porque joga levianamente com a cultura de massa,
seria, portanto, incorrer em um preconceito que não resolve a questão. No
entanto, é importante formular a questão com clareza. Não me parece que o
nosso problema, ilustrado pelo teor da resenha da Reuters, seja o mesmo de
Leslie Fiedler no antológico artigo Cross the border – Close that Gap:
Post-Modernism. O problema diagnosticado por Fiedler era basicamente a
incapacidade de analisar, avaliar e consumir a arte dentro dos padrões do
alto modernismo. E a modificação basilar que tal situação, ao mesmo tempo,
provocava na produção da arte. Também a urgência – para ele libertadora –
não de novos padrões para a crítica, naquilo que a idéia de padrão carrega
de imobilidade, prescrição e engessamento teórico, mas de olhares
diferenciados sobre a produção cultural, que estivessem dispostos a
considerar a presença de elementos proscritos pelo modernismo como um
indicativo das mudanças operadas na forma do homem se relacionar com o
mundo, em que não estariam ausentes o prazer e a fantasia. A incorporação
da cultura de massa ao processo de produção artística decretaria o fim da
grande arte porque finalmente arte e cotidiano poderiam caminhar juntos,
fazendo sentido na medida em que o homem comum poderia expandir suas
potencialidades sensoriais e sua imaginação, ultrapassando os limites
impostos pelo “evangelho modernista” que, em última instância, são os
limites da própria sociedade burguesa. É no bojo dessa experiência
limítrofe que Leslie Fiedler localiza o sucesso da pulp fiction e solicita
sua incorporação às chamadas artes institucionais, o que constituiria já
nos anos 60 a crítica dos discursos de dentro dos próprios discursos,
conforme afirmação de Linda Hutcheon. Assim, a exaltação da ficção barata
de pornografia, faroeste e violência não ocorre por seu teor moralmente
contestável, até porque os consumidores dessa arte sabem o que é real e o
que é ficcional. Ainda mais, reconhecem o tom do fake e o tom de piada.
Antes, a louvação daqueles elementos decorre do ato subversivo sobre o
estatuto da arte que seu aproveitamento na cultura representa, além da
declaração de liberdade às instâncias do corpo e dos sentidos que a
exploração da realidade tátil e da sensualidade presente na estilização do
sexo e da violência pode fazer. Uma produção dessa natureza estaria em
consonância com as demandas pela formação de novas sensibilidades,
arriscadas por Susan Sontag em suas “Notas sobre Camp”. O sentido dessa
(nova) arte é exatamente não ser arte, do ponto de vista tradicional. É
pôr em relevo aquilo que a grande arte exila – a cultura de massa e a
baixa literatura. É evidenciar a sensação no lugar do sentimento, trazendo
o corpo para a cena aberta, em vez de reverenciar o espírito. Em suma,
trata-se de uma arte social na medida em que é uma arte socializada, pois
seus pontos vitais emergem das ruas.
O texto de Leslie Fiedler é um manifesto entusiasmado do momento inaugural
do pós-modernismo, em que sua contundência política parecia inequívoca.
Até a idéia central de que não havia mais um sentido pronto já era, em si
mesma, o sentido do pós-modernismo e de sua produção cultural naquele
momento. Não seremos ingênuos a ponto de ler a produção de hoje da mesma
forma. Não soa mais como novidade, e muito menos como subversão, a
associação entre arte institucional e cultura de massa. No entanto,
atravessamos um período de propalado esvaziamento de sentido na cultura.
Isso tem provocado uma onda conservadora que parece querer trazer de volta
os velhos parâmetros de produção e avaliação da arte e demonização da
indústria cultural. Por isso, se por um lado o entusiasmo de Fiedler não
mais se aplica à leitura de um filme como Sin City – se tal entusiasmo for
apenas o delírio estreante do pós-modernismo festivo –, por outro, devemos
ser cuidadosos antes de enxergar como defeito justamente os elementos que
definem uma linguagem. Por isso, qual é exatamente a questão, hoje,
quarenta anos depois de cruzarmos a fronteira e preenchermos a lacuna? A
maior questão, talvez a única relevante, é como construir um sentido para
a cultura que vem sendo altamente problematizada pelos inimigos do
pós-modernismo como esvaziada, exaurida e decadente. Como fazer isso sem
incorrer no erro fácil da volta a uma moralidade fechada que ergue
barreiras de preconceitos e restaura valores elitistas, inclusive no que
tange à produção artística? Como buscar um sentido sem virar um
neoconservador?
Seria pretensão imaginar que existem respostas. Parece que a condição
pós-moderna se equilibra precariamente nessa tensão. No entanto, uma
olhada no cinema pós-moderno e outra na crítica “especializada” podem nos
levar por caminhos interessantes. Nessa direção é que funciona a menção a
Sin City. Em primeiro lugar, é patente, surpreendente e irônico o
despreparo da crítica para a recepção da cultura contemporânea. Patente
por exigir de suas produções a conformação a um modelo semiológico
perpetrado pela grande arte, em que suas partes se estruturem
organicamente para redundar num sentido maior, revelando assim uma
perspectiva que já não se sustenta mais. Surpreendente por demonstrar
total ignorância sobre os fatos principais desenrolados na crítica
cultural nos últimos quarenta anos, de maneira a fazer o texto de Leslie
Fiedler parecer, em alguns momentos, uma grande novidade. Irônico por
ressaltar como vanguarda, numa hora em que tentativas de vanguarda são
anacrônicas e obsoletas, o apuro formal – aquilo que constitui exatamente,
no filme, não um traço pós-moderno, mas formalismo em último grau. Levar
em conta o preciosismo que norteou a transposição dos quadrinhos de Frank
Miller para as telas, desde a precisão do traço até a convocação do
próprio desenhista para co-dirigir o filme, reedita o perfeccionismo da
arte moderna em seus melhores momentos, inclusive no seu caráter
excludente. Diferente do que possa parecer, Sin City não é um filme para o
grande público, que tem dificuldades em absorver a linguagem cifrada.
Pode-se dizer que se trata basicamente de uma obra cinematográfica para
fãs de quadrinhos e para estudiosos da cultura. O sucesso de público pode
ser decorrente da curiosidade que o boca-a-boca, junto com o barulho da
imprensa, pode provocar.
Em segundo lugar, Sin City ilustra como o apuro formal, elemento
estruturante da arte da alta cultura, pode conviver com os aspectos
fundamentais do pós-modernismo, exaustivamente enumerados no texto de
Fiedler, de maneira a ratificar uma teoria de que o que o pós-modernismo
nega não é o modernismo, mas uma forma específica de modernismo que se
deixou absorver pelo sistema contra o qual se insurgia e foi mumificado
dentro dos museus. Ao conjugar formalismo e cultura de massa hardcore, Sin
City aponta para uma forma de negociar com o passado estético que encena
no espaço do cinema aquele que é considerado um dos maiores problemas do
pós-modernismo como lógica cultural contemporânea e do pós-moderno como
condição do sujeito: a memória e a história. Opera na chave da
radicalização do pastiche quando copia com precisão milimétrica e absoluto
critério de tons e cores os quadrinhos de que se origina, no paroxismo da
auto-referência, confundindo, assim, realidade e simulação. Ao mesmo
tempo, parodia o modernismo quando traz à tona um formalismo exacerbado,
que será responsável pelo caráter de filme para iniciados, mas resulta num
blefe, tal qual uma moldura vazia.
Realmente, se pensarmos em hermenêutica, descartaremos Sin City. Não há
nada nesse filme que deva ser buscado além dele. O que existe está ali.
São imagens deslumbrantes de uma piada bem contada. Mas nós conhecemos o
teor virulento das boas piadas. A quebra da expectativa nos move o olhar
em outra direção, desestabiliza nossas bases e nos força a refazer o
equilíbrio sobre colunas diferentes. Mas a piada pós-moderna não refaz
nosso equilíbrio. Da desestabilização resulta a percepção da total
abertura, que não será aleatória se aprendermos a jogar com as referências
de um sentido impermanente por natureza. Parece que a resposta para a
questão do sentido é essa mesmo: os lances de negociação de um jogo.
MARCELA
MEDINA é mestranda em Letras pela PUC-Rio, pesquisadora da obra de
Manoel de Barros. É professora de língua e literatura.
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