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william butler yeats


certas peças nobres do Japão

 

 

 

I

Da série de livros que edito para minha irmã, prendo-me àqueles que possuem, acredito, algum valor especial para a Irlanda, agora ou no futuro. Eu pedi ao Sr. Pound estas peças magníficas porque penso que elas me ajudarão a explicar determinadas possibilidades do movimento dramático irlandês. Estou escrevendo estas palavras com minha imaginação instigada por uma visita ao estúdio do senhor Dulac, o distinto ilustrador de As mil e uma noites. Lá, vi a máscara e o cocar a serem usados em uma de minhas peças pelo ator que atuará no papel de Cuchulain, e que, usando esta face meio-grega, meio-asiática parecerá talvez uma imagem vista em delírio por algum adorador órfico. Espero ter conseguido a distância da vida que pode tornar crível estranhos eventos, palavras elaboradas. Escrevi uma pequena peça que pode ser encenada em uma sala por um preço tão pequeno que quarenta ou cinqüenta leitores de poesia podem pagar o preço. Não haverá cenário algum, de modo que três músicos (de quem os rostos bronzeados irão sugerir, espero, que eles andaram de uma vila para outra em algum país de nossos sonhos) possam descrever lugar e clima e em alguns momentos ação, e acompanhar isto tudo por tambor e gongo, ou flauta e cítara. Em vez dos atores jogarem-se a uma violência de paixão indecorosa na nossa sala de estar, a música, a beleza de forma e voz se concentram para atingir o clímax em uma dança de pantomima.

Na verdade, com a ajuda destas peças traduzidas por Ernest Fenollosa e finalizadas por Ezra Pound, eu inventei um tipo de drama distinto, indireto e simbólico que não tem a necessidade de multidão ou imprensa para pagar-se — uma forma aristocrática. Se esta peça e sua performance correrem tão suavemente quanto minha habilidade possam torná-las, irei, espero, escrever uma outra do mesmo gênero e assim completar uma celebração dramática da vida de Cuchulain planejada há muito tempo. Então, ocorrendo o número suficiente de performances para o prazer de amigos íntimos e umas pouco pessoas de escol e de bom gosto, registrarei todas as descobertas de método e seguirei para alguma outra coisa. É uma vantagem deste tipo de peça nobre que ela não precisa absorver a vida de ninguém, que alguns poucos objetos podem ser guardados em uma caixa, ou pendurados na parede onde darão ótimos ornamentos.

II

E ainda assim esta simplificação não é mera economia. Por aproximadamente três séculos o engenho tem feito a voz humana e os movimentos do corpo parecerem continuamente menos expressivos. Por um longo período venho me intrigando por que trechos que são intensos quando lidos ou falados durante o ensaio parecem surdos ou exauridos durante a performance. Simplifiquei o cenário, tendo encenado A ampulheta, por exemplo, ora com cortinas verdes, ora com aquelas admiráveis telas cor de marfim inventadas por Gordon Craig. A cada simplificação a voz recuperou alguma coisa de sua importância e, mesmo assim, quando os versos se aproximaram em temperamento a, digamos, Kubla Khan ou A ode para o vento oeste, o mais típico verso moderno, eu ainda sentia como se o som chegasse até mim de trás de um véu. A entrada do palco, a poderosa luz e sombra, o número de pés entre eu mesmo e os atores destruíram a intimidade. Achei-me imaginando atores que não precisassem de nada a não ser desenrolar uma lona em algum jardim oriental. Não o pensei apenas quando ouvi as falas, porém, mais ainda quando observei o movimento de um ator ou ouvi o canto em uma peça. Amo todas as artes que ainda possam me lembrar de suas origens no povo comum, e meus ouvidos estão confortáveis apenas quando o cantor canta como se o mero discurso pegasse fogo, quando ele parece ter passado para o canto quase imperceptivelmente. Fico entediado e infeliz quando ele não parece mais um ser humano, mas uma invenção da ciência, uma limitação que eu lamento imensamente. Para explicá-lo a mim mesmo, digo que se tornou um instrumento de sopro e não canta mais como homens ativos, marinheiro ou condutor de camelo, porque teve que competir com uma orquestra, onde o instrumento mais alto sempre sobreviveu. A voz humana pode se fazer mais alta apenas se tornando menos articulada, descobrindo algum novo tipo musical de rugido ou grito. Como a poesia não pode produzir nenhum dos dois, a voz precisa ser liberada desta competição e encontrar-se entre pequenos instrumentos, apenas ouvidos em sua plenitude talvez quando estamos próximos a eles. Deve ser de novo possível para uns poucos poetas escreverem como todos o fizeram um dia, não para a página impressa, mas para o canto. Mas o movimento também se tornou menos expressivo, mais declamatório, menos íntimo. Quando fui visitar outro dia um amigo, me encontrei entre um punhado de pessoas assistindo a um grupo de meninos e meninas espanhóis, dançarinos profissionais, dançando alguma dança nacional no meio de um hall. Sem dúvida seu treinamento foi longo, laborioso e exaustivo; mas agora ninguém poderia estar frustrado, seu movimento era cheio de alegria. Eles estavam entre amigos, e tudo não parecia mais que uma brincadeira de crianças; tão poderoso parecia, tão apaixonado, enquanto uma arte até mais milagrosa, separada de nós pelas luzes da ribalta, parece em comparação laboriosa e profissional. É correto estar próximo o suficiente de um artista para sentir por ele uma apreciação pessoal, perto o bastante, quem sabe, para sentir que nossa apreciação é devolvida.

Minha peça é tornada possível por um dançarino japonês que vi dançando em um estúdio, e em um hall e sobre um palco muito pequeno iluminado por uma excelente luz de palco. Apenas no estúdio e no hall de entrada, onde a iluminação era a luz a que estamos acostumados, o percebi realmente como a imagem trágica que mexeu com minha imaginação. Lá, onde nenhuma luz planejada, nenhuma pintura de palco fez um mundo artificial, ele o pôde, quando se levantou do chão onde esteve sentado de pernas cruzadas, ou quando estendeu um braço para devolver-nos alguma vida mais poderosa. Porque esta separação foi alcançada por meios humanos; ele tão só a devolveu, mas para a habitar como se fosse os abismos da mente. Percebeu-se de um jeito fresco, em cada estranhamento que separa, que a medida de toda grandeza da arte não pode ser mais que sua intimidade.

III

Toda arte da imaginação se mantém a uma distância e, uma vez elegida, esta distância precisa ser mantida com firmeza contra um mundo que a comprime. Verso, ritual e dança em associação com ação exigem que gestual, figurino, expressão facial, arranjo do palco precisam ajudar a manter a fronteira. Nossas artes que não são da imaginação ficam contentes em apresentar um pedaço do mundo como o conhecemos em um lugar isolado, em colocar suas fotografias como se fossem um drapeado ou um quadro direto, mas as artes que me interessam, enquanto parecem separar do mundo e de nós um grupo de figuras, imagens, símbolos, nos permitem passar por alguns momentos para um abismo da mente que fora até agora sutil demais para nossa habitação. Como de um abismo da mente se pode aproximar apenas através daquilo que é mais humano, mais delicado, não devemos confiar em distância corporal, mecanismo e barulho alto.

Pode estar tudo bem se vamos à escola na Ásia, dado que a distância da vida na arte européia surgiu de pouco mais que de uma dificuldade com material. Na Grécia meio asiática, Calímaco ainda podia retornar para um manuseio estilístico das dobras do plissado após o plissado naturalista de Fídias, e no Egito a mesma idade que viu o chefe da vila engastado na madeira para o enterro em alguma tumba com um tão completo naturalismo viu também postas em praça pública estátuas tão cheias de uma formalidade augusta que implicavam em proporções tradicionais, em uma defesa filosófica. A pintura espiritual do século XIV avançou para Tintoretto e para aquela de Velázquez à pintura moderna sem nenhum senso de perda para ponderar o ganho, enquanto a pintura do Japão, não possuindo nossa lua européia para engrossar o saber, entendeu que nenhum estilo que um dia deu prazer a imaginações nobres perdeu sua importância, e escolhe o estilo de acordo com a matéria. Em literatura também tivemos a ilusão de mudança e progresso, a arte de Shakespeare passando para a de Dryden e daí para o drama em prosa naquilo que pareceu, quando estudado em seus detalhes, um progresso ininterrupto. Fôssemos gregos, e assim nada mais que meio-europeus, uma multidão honorável teria martirizado, apesar de em vão, o primeiro homem que preparasse uma cena pintada, ou que reclamasse que solilóquios não são naturais em vez de repetir com um suspiro "nós não podemos retornar para as artes da infância por mais belas que sejam". Apenas nossa poesia lírica manteve seu hábito asiático e renovou-se em sua própria juventude, dividindo perpetuamente o que foi chamado seu progresso em uma série de revoluções violentas.

Portanto, é natural que eu vá à Ásia para uma convenção de palco, para faces mais formais, para um coro que não tem parte na ação e talvez para aqueles movimentos corporais copiados dos teatros de marionete do século XIV. Uma máscara vai me permitir substituir a face de algum ator de lugar-comum ou por aquela repintada para encaixar em seu próprio encanto vulgar pela invenção delicada de um escultor e trazer a audiência próxima o bastante da encenação a ponto de ouvir cada inflexão da voz. Uma máscara nunca parece mais que uma face suja, e não importa o quão perto você se aproxime continua sendo uma obra de arte; tampouco perdemos com a paralisação dos semblantes, pois o sentimento profundo é expresso por um movimento do corpo todo. Em pintura poética e em escultura, a face parece mais nobre por falta de curiosidade, de atenção alerta, tudo que sumarizamos sob a famosa palavra dos realistas "vitalidade". É mesmo possível que o ser seja completamente possuído apenas pelos mortos, e que seja algum conhecimento disto que nos faz olhar com tanta emoção a face da Esfinge ou Buda. Quem pode esquecer a face de Khyaliapin como o rei Mogul em Príncipe Igor, quando uma máscara cobrindo a porção superior de seu rosto o fez parecer uma Fênix ao fim de seus mil anos sábios, esperando condescendente o ninho em chamas, e o que não ganhou por esta imobilidade em dignidade e poder?

IV

Realismo é criado para a gente comum e foi sempre seu prazer peculiar, e é o deleite até hoje de todos aqueles cujas mentes educadas tão somente por mestres-escola e jornais não têm a memória da beleza e sutileza emocional. O ocasional realismo humorístico que elevou tanto o efeito emocional da tragédia isabelina, digamos o velho de Cleópatra com uma víbora, carregando a crise trágica através do contraste acima do limite represado do teatro de corte de Corneille, foi feito de início para agradar o cidadão comum em pé no murmurinho do chão, mas as grandes falas foram escritas pelos poetas que lembraram seus patronos nas galerias cobertas. O fanático Savanarola estava nada menos que morto por um século, e o lamento no delírio de sua retórica, de que todo príncipe da Igreja ou Estado por toda Europa estava totalmente ocupado com as grandes artes, ainda tinha sua parte de verdade. Uma passagem poética não pode ser entendida sem uma rica memória, e, como as escolas de pintura mais antigas, apela para uma tradição, e não simplesmente quando fala de "Lethe", "Wharf" ou "Dido na praia", mas em termos de ritmo, de vocabulário; pois o ouvido precisa notar leves variações sobre velhas cadências e palavras costumeiras, toda esta alta linhagem de estilo poético onde não há nada de ostentoso, nada cru, nenhuma respiração de novo-rico ou jornalista.

Vamos empurrar as artes populares para um completo realismo, pois esta seria sua honestidade; e as artes comerciais desmoralizadas por sua responsabilidade, sua incompletude, seu idealismo sem sinceridade ou elegância, sua pretensão de que ignorância pode entender a beleza. No estúdio e na sala de estar podemos encontrar um verdadeiro teatro da beleza. Poetas do tempo de Keats e Blake derivaram sua descendência apenas através do que é menos declamatório, menos popular na arte de Shakespeare, e em tal teatro encontrarão sua audiência habitual e manterão sua liberdade. A Europa é muito antiga, e assistiu a muitas artes circularem, e aprendeu o fruto de cada flor e soube que este fruto caducou e que agora é tempo de copiar o Leste e deliberadamente viver.

V

Vós não ireis, enquanto permanecerdes comigo, provar/ Do barril não purificado a uva diluída/ De uma vinheira baixa ou uma planta mal-feita/ Mas como ancestralmente as ilhas egéias/ Purificada em libação em suas festas solenes:/ E os mesmos cálices vós ireis segurar gravados/ Sem figuras vis de perdidos, lânguidos camponeses/ Mas de como deuses viveram e comandaram.

O teatro No do Japão tornou-se popular no fim do século XIV, recolhendo para si danças realizadas nos templos Shinto em honra dos espíritos e deuses ou por jovens nobres na corte, e a muito antiga poesia lírica, talvez recebendo sua filosofia e seu formato final de sacerdotes de uma escola contemplativa do budismo. Um pequeno daimio ou senhor feudal da antiqüíssima capital Nara, um contemporâneo de Chaucer, foi o autor, ou talvez apenas o produtor, de muitas peças. Ele as trouxe para a corte do Shogum em Kioto. A partir de então o Shogum e sua corte ficaram tão ocupados com poesia dramática quanto o Mikado e a sua com a lírica. Quando Hamlet estava sendo encenado pela primeira vez em Londres, o No foi tornado uma parte necessária das cerimônias oficiais em Kioto, e jovens nobres e príncipes, proibidos de freqüentar o teatro popular, no Japão como em qualquer parte um lugar de pantomima e naturalismo, eram encorajados a testemunhar e atuar em espetáculos onde fala, música, canto e dança criavam uma imagem de nobreza e de estranha beleza. Quando a revolução moderna chegou, o No, após uma breve impopularidade, foi encenado pela primeira vez em certos teatros públicos, e em 1897 um navio de guerra foi chamado de Takasago, em homenagem a uma de suas peças mais famosas. Algumas das antigas famílias nobres são atualmente muito pobres, seus homens podendo ser nada mais que funcionários e trabalhadores, mas eles ainda freqüentam estes teatros. "Completude" é o que a palavra No significa, e a sua completude como a de algumas pessoas cultivadas que entendem as alusões literárias e mitológicas e as letras ancestrais citadas nas falas ou no coro, é a sua disciplina, uma parte de sua linhagem. Os próprios atores, diversamente dos atores desprezados do teatro popular, continuaram orgulhosamente de pai para filho uma arte elaborada, e mesmo agora um ator publica sua árvore genealógica para provar sua habilidade. Um ator escreveu em 1906 em uma circular de negócios —eu estou citando da transcrição do Sr. Pound das notas de Fenollosa— que após trinta gerações de nobres uma mulher de sua casa sonhou que uma máscara era levada para ela desde o Paraíso, e logo após ela deu à luz um filho que se tornou ator e pai de atores. Sua família ele declarava possuir ainda uma carta de um Mikado do século XV conferindo a eles uma cortina de teatro, branca embaixo e púrpura encima.

Existiam cinco famílias destes atores e, proibidos antes da revolução de atuar em público, eles receberam doações de terras ou salários do Estado. A cortina branca e púrpura ficava sem dúvida pendurada em uma parede atrás dos atores ou sobre sua porta de entrada, pois o palco No é uma plataforma cercada pela audiência por três lados. Nenhum efeito "naturalista" é buscado. Os atores usam máscaras e acharam seus movimentos naqueles de marionetes: o mais famoso de todos os dramaturgos japoneses compunha inteiramente para marionetes. Um ágil ou lento movimento e uma longa ou curta quietude, e então outro movimento. Eles cantam tanto quanto falam, e há um coro que descreve a cena e interpreta seus pensamentos e que nunca se tornou, como no teatro grego, participante da ação. No clímax, em vez da paixão desordenada da natureza, há dança, uma série de posturas e movimentos que podem representar uma batalha, ou um casamento, ou a dor de um fantasma no purgatório budista. Mais tarde estudei certas destas danças com atores japoneses, e notei que seu ideal de beleza, diversamente daquele da Grécia e como as pinturas do Japão e China, os fazem pausar em momentos de tensão muscular. O interesse não está na forma humana, mas no ritmo em que esta se move, e o triunfo de sua arte é expressar o ritmo em sua intensidade. Há alguns movimentos pendulares de braços e corpo como os que fazem a beleza de nossa dança. Eles se movem a partir do quadril, mantendo constantemente a parte superior de seu corpo parada, e parecem associar a todo gesto ou pose algum pensamento específico. Eles cruzam o palco com um movimento escorregadio, e tem-se a impressão não de ondulação, mas de linhas retas contínuas.

A sala de gravuras do Museu Britânico está agora fechada como medida de economia de guerra, de modo que posso apenas descrever de memória as estampas coloridas teatrais, em que um navio é representado por um mero esqueleto de salgueiros ou de vime pintados de verde, ou uma árvore frutífera por um arbusto em um vaso, e em que atores amarram suas máscaras com fitas que são juntas em um coque atrás da cabeça. É uma brincadeira de crianças tornada a mais nobre poesia, e não há observação à vida porque o poeta arranja diante de nós todas estas coisas que nós sentimos e imaginamos em silêncio.

O Sr. Ezra Pound achou entre os manuscritos de Fenollosa uma história tradicional entre os atores japoneses. Um jovem estava seguindo uma magnífica velha pelas ruas de uma cidade japonesa, e então ela se volta para ele e diz: "Por que você me segue?" "Porque você é tão interessante." "Isto não é verdade, eu sou muito velha para ser interessante." “É que queria, ele disse, se tornar um encenador de velhas no palco No”. Se ele desejasse se tornar famoso como um ator No, ela disse, não devia observar a vida, nem aprontar uma voz velha e conter a música de sua voz; “precisa saber como sugerir uma velha e ao mesmo tempo achar tudo no coração”.

VI

Nas próprias peças eu descubro uma beleza e sutileza que posso traçar talvez até as três vertentes de sua origem. As dores do amor, o amor de pai e filha, de mãe e filho, de menino e menina, podem dever sua nobreza a uma vida cortesã. Porém, aquele a quem as aventuras ocorrem, um viajante geralmente de um lugar distante, é mais freqüentemente um sacerdote budista, e a ocasional sutileza intelectual é talvez budista. A aventura ela mesma é geralmente o encontro com o fantasma, deus ou deusa em algum lugar sagrado ou tumba ultra-lendária; e deus, deusa ou fantasma lembram-me às vezes de nossas próprias lendas e crenças irlandesas, as quais um dia podem ter diferido pouco daquelas do fiel xintoísta.

A manta de penas, que pela falta a deusa da lua (ou devemos chamá-la de fada?) não pode retornar pra o céu é o gorro vermelho cujo roubo pode prender nossas fadas do mar na terra seca; e os amantes fantasma em Nishikigi lembram-me do garoto e garota Aran que na história de Lady Gregory vêm ao padre após a morte para serem casados. Estes poetas japoneses também sentem pela tumba e pelo bosque a emoção, o senso de espanto que nossa gente do interior falante do gaélico às vezes mostram quando você fala do Castelo Hackett ou de algum poço sagrado; e eis porque, talvez, agrada-os começar tantas peças com um viajante perguntando pelo seu caminho com várias questões, uma convenção agradável para mim; pois quando comecei a escrever peças poéticas para um teatro irlandês tive de pôr de lado a ambição de ajudar a levar de novo a certos lugares sua antiga santidade ou romance. Eu podia indicar a cena de uma peça em Baile´s Strand, mas não achava pausa na ação apressada para descrições de praia, ou mar ou da grande árvore de teixo que um dia esteve lá; e não podia em A fortaleza do rei achar espaço, antes que começasse a antiga história, para evocar o rio raso e as poucas árvores e campos pedregosos da moderna Gort. Mas no Nishikigi a história dos amantes perderia seu pathos se nós não víssemos aquela tumba esquecida onde "a raposa fujona" vive entre "as orquídeas e as flores de crisântemo." Os homens que criaram esta convenção eram mais parecidos conosco do que com os gregos e os romanos, mais ainda do que são Shakespeare e Corneille. Sua emoção era auto-consciente e reminiscente, sempre se associando com pinturas e poemas. Eles ponderaram tudo que o tempo tirou ou irá tirar e encontraram seu deleite em lembrar amantes celebrados no cenário que a paixão pálida ama. Viajaram buscando pelo estranho e pelo pitoresco: "Eu vou por aí com meu coração posto em nenhum lugar em particular, não mais que uma nuvem. Imagino agora se o mar seria desse jeito, ou o lugarzinho Kefu que dizem está fincado nele." Quando um viajante pede informações a meninas na estrada ele é indicado para seguir até certos pinheiros, que irá reconhecer porque várias pessoas os desenharam.

Imagino se estou deslumbrado ao descobrir nas próprias peças (poucos exemplos foram traduzidos até aqui e eu posso ser mal conduzido por acidente ou pela idiossincrasia de algum poeta) uma atuação sobre uma única metáfora, tão deliberada quanto o ritmo ecoante da linha em pintura chinesa e japonesa. No Nishikigi o fantasma da amante-menina leva o tecido de relva que ia tramando quando devia ter aberto a porta do quarto para seu amante, e relva tecida retorna de novo e de novo em metáfora ou incidente. Os amantes, agora em um corpo etéreo que lamentam por causa do amor não consumado, são "enlaçados como os padrões de relva são enlaçados." De novo eles são como um tecido não terminado: "estes corpos, não possuindo manto, mesmo agora não se uniram, realmente uma história vergonhosa, uma história para trazer vergonha aos deuses." Antes que possam trazer o sacerdote à tumba, gastam o dia "tirando do caminho o mato que cresceu demais no caminho em Kefu", e o conterrâneo que os informa está "cortando mato no monte”; e quando finalmente a prece do sacerdote os une em matrimônio, a noiva diz que fez "uma ponte de sonho sobre a relva selvagem, sobre a relva em que moro;" e no fim a noiva e o noivo mostram-se por um momento “De sob as sombras da relva de amor”.

Em Hagoromo a manta de penas da mulher-fada também cria seu ritmo a partir da metáfora. No belo dia da primavera que começa "a plumagem do Paraíso não deixa escapar nem pena nem chama", "nem é a pedra da terra gasta além da conta pelo escovar da saia emplumada das estrelas." Alguém meio que lembra mil pinturas japonesas, ou o que quer que venha primeiro à memória. Esta tela pintada por Korin, digamos, mostrada recentemente no Museu Britânico, onde a mesma forma está ecoando em onda, e em nuvem e em pedra. Na poesia européia eu lembro que Shelley repetiu continuamente fonte e caverna, seu córrego largo e solitária estrela. Ao negligenciar ao personagem o que parece para nós essencial no drama, como fazem seus artistas ao negligenciar relevo e profundidade, quando arranjam flores de um vaso em uma fila estreita, eles tornaram possíveis uma centena de adoráveis enredamentos.

VII

Estas peças surgiram em uma era de guerra contínua e se tornaram parte da educação de soldados. Estes soldados, cujas naturezas tinham tanto de Walter Pater quanto de Aquiles combinadas com sacerdotes budistas e mulheres para elaborar a vida em uma cerimônia, o jogar bola, o beber chá e todos os grandes eventos do Estado tornando-se um ritual. Na pintura que decorava suas paredes e na poesia que recitavam descobre-se que o único signo de uma grande era que não nos frustra é a mais vívida e sutil distinção de sentidos e a invenção de imagens mais poderosas que os sentidos, a presença contínua de realidade. Ainda é verdadeiro que a Divindade nos dá, de acordo com Sua promessa, não Seus pensamentos ou Suas convicções, mas Sua carne e sangue, e acredito que a técnica elaborada das artes, parecendo criar de si mesma uma vida supra-humana, ensinou mais homens a morrer do que a oratória do Livro de Horas. Apenas acreditamos naqueles pensamentos que foram concebidos não no cérebro, mas no corpo todo. O soldado minóico que carregava sobre seu braço o escudo ornado com o pombo no museu de Creta, ou que tinha sobre sua cabeça o elmo com o cavalo alado, sabia seu papel na vida. Quando Nobuzane pintou a criança santa Kobo, Daishi ajoelhando cheio de uma doce austeridade sobre a flor de Lótus, ele apresentou diante de nossos olhos a vida superior, a aceitação da morte.

Não posso imaginar aqueles jovens soldados e as mulheres que amaram satisfeitos com a linhagem pobre e a teatralidade de Carlyle, nem, penso, com a grandiloqüência de Hugo. Estas coisas pertencem a uma idade industrial, a uma seqüência mecânica de idéias, mas quando me lembro este jogo curioso que os japoneses chamavam, com uma confusão dos sentidos que perece típica de nosso próprio tempo, "ouvir o incenso", eu sei que alguns entre eles entenderiam a prosa de Walter Pater, a pintura de Puvis de Chavannes, a poesia de Mallarmé e Verlaine. Quando o heroísmo retornou para nossa era trouxe consigo como seu primeiro dom a sinceridade técnica.

VIII

Já faz agora algumas semanas que venho elaborando minha peça em Londres, o único lugar em que posso achar a ajuda de que preciso, a maestria de design de Sr. Dulac e a engenhosidade de movimento de Sr. Ito. Ainda assim, agrada-me pensar que estou trabalhando para meu próprio país. Talvez algum dia a peça da forma que estou adaptando para propósitos europeus irá despertar uma vez mais, seja em gaélico ou inglês, sob a inclinação das memórias de Slieve-na-mon ou de Croagh Patrick; pois esta forma não tem necessidade de um cenário que foge com o dinheiro nem de uma sala de teatro. Ainda assim eu sei que apenas me agrado com um capricho; pois, se acaso meus escritos sejam dignos do mar, precisam navegar: não posso dizer onde eles podem ser levados pelo vento. E não são os contos de fadas de Oscar Wilde, que foram escritos para o Sr. Ricketts e o Sr. Shannon e para alguma damas, muito populares na Arábia?

W. B. Yeats, abril de 1916.
 

 

tradução de Ricardo Pinto
 

WILLIAM BUTLER YEATS, poeta, dramaturgo, ensaísta e místico, foi uma das figuras-chave da literatura moderna em língua inglesa, recebendo em 1923 o Prêmio Nobel de Literatura. O ensaio que publicamos nesta edição, pela primeira vez traduzido para o português, é a introdução de Yeats às duas peças do teatro No traduzidas por Ernest Fenollosa e posteriormente compiladas e adaptadas pelo poeta Ezra Pound. Na próxima edição publicaremos a tradução das próprias peças, Nishikigi e Hoburamo, reconstituindo a edição original da obra. O original em inglês pode ser acessado na sessão de e-books da nossa revista, e uma edição artesanal de luxo com tiragem limitada da tradução está no prelo. Esperem um pouquinho.


 

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