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sônia rodrigues
making off ou como escolher um problema
Levei dias escolhendo o tema
de minha coluna de estréia na Confraria do Vento. Acabei me decidindo por
“Rejeição”, palavra mortal para mim, para meus personagens, para minha
carreira.
Escrevi o parágrafo acima às 9:40 da manhã que antecedeu o envio dessa
coluna. E parei para pensar a que personagens me referia. A enfermeira
Nadir do romance “O Robe do Dragão” ou a velhinha com passado de odalisca
de “O jaguar azul”? São personagens por quem sonham os homens que leram
suas peripécias. “Impagável essa mulher”, disse um crítico generoso se
referindo a Bela, personagem do segundo título. Releio o que escrevi sobre
as duas às 9:53 e constato minha imprecisão. Como assim “sonham os
homens”?! Devem existir homens que odeiam mulheres que acordam bem
humoradas e já pensando em sexo ou gastam dinheiro em lingerie e
brinquedinhos sexuais. E será que só existem mulheres prontas para a
interlocução carinhosa, cientes do seu próprio valor? Não. O ser humano
como fonte é rico. Em homenagem a essa riqueza contei várias histórias de
mulheres a quem homens negam sexo e de homens pisoteados por mulheres, nas
tentativas de aproximação. Represálias contra características sensuais
alheias não escolhem gênero nos meus livros. Posso ter escrito pouco sobre
o desinvestimento amoroso entre iguais porque, apesar de acreditar que
exista, não conheço o suficiente. Minha especialidade é a rejeição hetero.
Pronto. Apareceu a palavra chave. É só deixar o inconsciente correr solto
que as mãos são conduzidas para o caminho que desejam percorrer, mas não
sabem como, construindo o texto numa seleção/combinação de fragmentos de
memória, conhecimento, reflexão sobre sentimentos, emoção.
Do inconsciente brotam, são pescados dois componentes estruturais do texto
que são o repertório e as estratégias. Nesse momento, 10:09, confiro se é
consistente minha afirmação sobre o que contém o inconsciente como matéria
de escrita. Não estou inventando essa história do inconsciente de
escritor. Em 1910, Freud escreveu sobre a diferença de objeto entre o
estudioso da mente e o escritor. Devo dizer, numa gabolice profissional
irresistível, que ele reconheceu a primazia de quem se debruça sobre o
próprio inconsciente, não o dos outros. Sei o que contém o meu
inconsciente, sei como pesco o que existe lá. Se não soubesse, não
escreveria.
Busco autores de literatura que comprovem minha hipótese de ênfase na
rejeição. Só me vem à cabeça textos de prazer, textos para se ler correndo
porque agarra nossa emoção com sua trama intrincada. “Conto de duas
cidades”, Charles Dickens. Um túmulo para Boris Davidovich, Danilo Kis.
Fumaça e Espelhos, Neil Gaiman. Cem anos de solidão,Gabriel Garcia
Marques. Paula, Isabel Allende, A leste do Eden, John Steinbeck. A
trilogia tebana, Sófocles. A vida como ela é, Nelson Rodrigues. Os doze
trabalhos de Hércules, Monteiro Lobato. A hora do vampiro, Primavera
eterna, O iluminado, Stephen King. As mulheres do meu pai, Eduardo
Agualusa. Rei Lear e A Tempestade, Shakespeare...
A rejeição é tema recorrente de todos esses autores? Não. A rejeição é meu
tema recorrente. Assumo. Mas os personagens deles fazem qualquer coisa
para não serem rejeitados, , atuam como se a rejeição não lhes importassem
a mínima. Na verdade, relembrando as tramas, penso que a maneira como os
personagens reagem à rejeição pelo outro é decisiva.
Para além da trama, suspeito ser a rejeição força motriz das estratégias
textuais. Como o escritor articula o texto está relacionado com o seu
conceito de rejeição. Mais do que o leitor que deseja seduzir, me atrevo a
dizer que a escolha das estratégias está relacionada com o indivíduo ou
grupo pelo qual o escritor não suporta ser rejeitado.
Escreve-se para os vizinhos ou para Deus, disse Jean-Paul Sartre. Quem são
os vizinhos? Me parece que são os pares. Quem é Deus? Para mim, são os
onipotentes leitores que não vemos, não sabemos como atingir, mas que
estão lá, em algum recanto oculto e que poderão, se assim quiserem,
estender a mão e aceitar nossa oferenda. E gostar, se emocionar, interagir
criticamente (de preferência críticas elogiosas) com o texto escrito.
Perguntei a dez escritores, por telefone, enquanto escrevia essa coluna:
para quem você escreve, em primeiro lugar? Seis responderam: para mim
mesmo. Dois responderam para meu leitor imaginário. Os outros disseram que
escrevem para a pessoa que desejam seduzir, pessoa de carne e osso, amor
platônico (ainda) ou amor carnal, mas, admitiram, só mostram o que
gostaram, portanto, também escrevem para eles mesmos. Vejam, perguntei a
homens e mulheres que se dedicam à escrita, não estou identificando o sexo
nas respostas de propósito para não reforçar ou contestar preconceitos de
gênero. A maioria escreve para seu próprio deleite, em primeiro lugar.
Depois é que começa a batalha para não ser rejeitado por quem tem poder
para impedir o escritor de chegar a Deus ou aos vizinhos. Ou para impedir,
travar a própria escrita, no caso da musa.
Vamos brincar, por instantes, com o texto escrito para este ser onipotente
e invisível que, de algum lugar, pode tornar o livro amado por todos
aqueles com quem tem contato, no famoso boca a boca. O texto escrito para
os invisíveis não pode colocar mais armadilhas do que as necessárias para
se contar, de forma clara e emocionante, o que aconteceu ou o que o
narrador pensa a respeito do que aconteceu. E em relação ao que o narrador
pensa, deve ser parcimonioso porque se o narrador não for personagem, pode
atrapalhar, e muito, a emoção do leitor.
É um texto rápido, fantasioso, preciso, que apresente multiplicidade de
conexões generosa, afinal, o leitor precisa conseguir fazer as conexões,
são as dele e as dos personagens, não as do autor, as conexões que
interessam. Algo na direção das seis propostas para o próximo milênio,
oferecidas por Italo Calvino, no século passado.
O texto escrito para vizinhos, pares, precisa ser consistente com o que os
vizinhos apreciam, aprovam. O autor, em geral, é compelido a demonstrar
suas conexões e quanto mais múltiplas e sofisticadas forem, melhor. As
estratégias de escrever para Deus e para os vizinhos nem sempre coincidem.
Voltamos, então, à rejeição. Releio mais uma vez o primeiro parágrafo e a
memória me traz as rejeições que sofri na carreira de escritora de ficção
e na de especialista em literatura na Internet zero ponto zero. Foram
poucas, cheguei a listá-las, cinco, ao todo, constatei que não me tiraram
pedaço, apaguei. Não vale a pena publicar as rejeições. As que mais me
chatearam foram rejeições de vizinhos, aqueles que, a princípio, seriam
meus pares. E o que mais me chateia é que, apesar de escrever para
leitores, ainda me sinto rejeitada quando alguém que faz meta literatura
ou escreve artigos com duas citações em cada parágrafo não aprova ou faz
restrições a textos meus.
O que me parece mais importante é que “pares” , para mim, é uma palavra
que me traz as idéias de igualdade, partilha. São camaradas em armas ou
musa. Mas minha concepção emotiva não corresponde à realidade, corresponde
à dimensão grega de honra e excelência. Pares significa, nos dias de hoje,
aprovar ou não a publicação, estimular ou abortar a leitura através da
crítica, emitir pareceres para liberar ou não verba para a realização de
um projeto. Os “pares” hoje estão no meio do caminho entre o escritor e
Deus. Ás vezes, estão entre o escritor e o editor, portanto existem duas
camadas antes da interlocução final.
Não sei se isso é bom ou ruim. Penso que é inevitável. As pessoas que
administram os meios para difusão cultural querem ter segurança de que vão
investir seu dinheiro ou emprestar seu prestígio ao texto que atende ao
seu repertório de valores sociais, culturais, científicos, morais. Nunca
defendemos tanto a diversidade, nunca a diversidade foi tão determinada
por quem decide qual diversidade deve-se apoiar.
Nesse contexto, a rejeição para um escritor muda completamente de figura.
O espírito da época, o clima cultural pressupõe mentalidade, consenso
grupal, portanto, sem a liberação de acesso, o escritor não será lido nem
pelos pares.
A menos que o escritor tenha grande poder individual conquistado, como
Luis Fernando Veríssimo, que pode zombar, impunemente, do Zeitgeist. E,
mesmo assim, com humor, metaforicamente, para cada um entender como
quiser.
É verdade que, hoje, a Internet existe como espaço onde o leitor continua
invisível, mas as barreira, as camadas de poder são menores.
Nesse ponto, o escritor pode criar seu próprio espaço de contato com a
entidade invisível para quem quer ofertar seu texto. A rejeição está
sendo, nos dias de hoje, reconfigurada. Por outro lado, na Internet, a
rejeição é aberta, imediata, às vezes, abjeta. E anônima.
Escritores talvez sejam seres amaldiçoados por seus próprios talentos, por
suas características intrínsecas. Alguém que precisa se mostrar, precisa
seduzir, mas nunca tem certeza se vai conseguir porque não consegue ver a
platéia. Só a interna.
“Minha vida de stripper” de Diablo Cody descreve o quanto é preciso se
mostrar para despertar desejo com o corpo. Como é dura a rejeição ao corpo
nu. A palavra também exibe o que é mais íntimo. Talvez por isso, lidar com
a rejeição seja o mais difícil no ofício da escrita.
SÔNIA RODRIGUES escritora carioca nascida em 1955, em Irajá, subúrbio
do Rio, é jornalista e autora de 23 títulos já publicados.
Filha do dramaturgo e cronista Nelson
Rodrigues, fez mestrado e
doutorado em Literatura na PUC-Rio. Estréia nesta edição sua coluna na
Confraria.
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