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claudia roquette-pinto
diários do graffiti II
Banksy - Ratos de Rodapé
Uma fileira de chimpanzés cabisbaixos, vestidos como homens-sanduíche, em
cujos cartazes está escrito: “Vão rindo agora, mas um dia estaremos no
poder”. Esta cena, com toda a sua carga de ironia política, não é uma
propaganda da mais recente seqüência de um filme de ficção científica dos
anos 80. Ela está estampada em um trem que circula nos arredores de
Londres. Seu autor responde apenas pelo nome de Banksy, e, embora ninguém
saiba sua verdadeira identidade, é um dos mais conhecidos artistas de rua
do mundo. Seus trabalhos, inevitavelmente carregados de conteúdo social,
questionadores diante das idéias de autoridade e poder, estão espalhados
por todos os cantos da cidade. São dele os (agora já populares) stencils
da dupla de policiais ingleses enlaçados num beijo ardente; assim como os
“ ratos de rodapé” - que ora aparecem, tais quais proper englishmen,
portando um sisudo conjunto de maleta e guarda-chuva, ora podem ser
vistos, munidos de alto-falantes, “protestando” próximos à entrada da
Associação Britânica para Surdo-Mudos... Sarcástico e provocativo, Banksy
já realizou ações tão ousadas quanto grafitar, sob o olhar atônito de uma
patrulha de fronteira, o muro que separa Israel do território palestino.
Ou adentrar o British Museum, de bigode falso, sobretudo e chapeuzinho
pied-de-coq, para ali instalar uma réplica da Mona Lisa - com o detalhe de
que, no lugar do rosto da célebre personagem, o artista pintou uma carinha
da Smiley, aquele ícone sorridente das mensagens de e-mail.
Trocar o rosto da Mona Lisa por um ícone da Internet. Procedimentos como
este, de apropriação de elementos da cultura de massa pela “alta arte” não
são mais nenhuma novidade, já tendo sido adotados, entre outros
movimentos, pela Pop Art (apenas para ficar em dois dos exemplos mais
célebres, citemos as latas de sopa Campbell’s, de Andy Warhol e as telas
de Roy Lichtenstein, que se utilizava da linguagem das HQs). Mas, neste
caso, talvez o gesto represente um passo além, ao propor uma fusão
completa, e de mão dupla, desses mesmos elementos, uma completa e
irreverente inclusão (e confusão) de uns nos (e pelos) outros.
A falta de cerimônia, a abordagem anárquica dos elementos formadores de
sua própria cultura, a perda de fronteiras rigidamente delimitadas - sejam
elas fronteiras sociais ou geográficas - a apropriação do espaço público,
a contravenção, a busca por uma excelência de execução artística frente à
uma urgência temporal e física – todas essas são algumas das
características e dos desafios do graffiti, que o tornam uma forma de arte
das mais instigantes e mais sintonizadas com a sensibilidade urbana
contemporânea.
Mestiçagem
O graffiti, como é conhecido hoje, desenvolveu-se originalmente no final
da década de 70, em Nova Iorque e na Filadélfia, quando artistas começaram
a pintar seus nomes em paredes ou estações de metrô nos arredores de
Manhattan. A mistura de culturas em estreitíssima convivência, típica de
uma metrópole como Nova Iorque _ onde os guetos do Harlem e o mundo
glamuroso da Broadway e de Wall Street convivem lado a lado_ propiciou um
terreno fértil para os primeiros artistas desta arte das ruas. Num curto
espaço de tempo, a quantidade de jovens pintando seus nomes (tags) por
toda a cidade levou-os a tentarem desenvolver novas maneiras de ganhar
destaque. As tags foram ficando cada vez maiores, até que as primeiras
“peças” (em inglês pieces, abreviação de masterpieces, ou obras de arte)
começaram a aparecer nos trens. Dizem que, em meados da década de 80, já
não havia na cidade um único trem que não tivesse sido pichado, de cima a
baixo, pelo menos uma vez.
Conforme a linguagem do graffiti se desenvolvia e os artistas adquiriam
mobilidade, o fenômeno foi se espalhando pelo país, posteriormente
alcançando a Europa. Ao mesmo tempo, as primeiras exposições, aqui e ali,
começavam a acontecer. No entanto, foi somente com o advento do movimento
Hip-Hop que esta cultura penetrou em quase todos os países ocidentais.
Na América do Sul, o graffiti já nasceu sob o impacto dos problemas
sociais e econômicos, do tráfico de drogas e de conflitos armados
decorrentes das guerras de facção. E, do mesmo modo como no início do
movimento em Nova Iorque, o graffiti sul-americano tem como seus expoentes
artistas nascidos nos subúrbios e comunidades carentes, o que o leva a
refletir, em sua temática, uma forte oposição às classes dominantes e uma
visão bastante crítica das estruturas de poder.
Em seu Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade esperava que tendências
mundiais das artes viessem a gerar versões brasileiras das mais inovadoras
e surpreendentes. O Brasil pode se orgulhar de apresentar, no cenário do
graffiti mundial, uma face única e exuberante. Se no passado os
grafiteiros brasileiros voltavam os olhos para os Estados Unidos e para a
Europa, sendo relativamente influenciados por esses ambientes artísticos,
a dificuldade em obter informações consistentes sobre o que acontecia lá
fora, somada à escassez de recursos materiais por parte dos artistas
(falta de verbas, dificuldade de importação de tintas apropriadas,
repressão policial, etc.), acabou levando-os a desenvolver novos estilos e
técnicas. O uso do rolinho para cobrir grandes extensões, que depois são
contornadas pelo spray (medida que se tornou necessária por razões
econômicas), por exemplo, é um recurso próprio do graffiti nacional – além
de ser uma resposta adequada às nossas dificuldades - como tantas outras
práticas cotidianas em nosso país, baseadas na adaptação e no improviso.
Esse período de relativo isolamento, seguido pela recente abertura para o
contato internacional - possibilitada, entre outros fatores, pela
crescente inclusão digital - foi responsável pela criação de uma cena
artística muito particular, dona de seus próprios (e inusitados) recursos
e mensagens. É possível que o graffiti nacional, de modismo inicialmente
importado, tenha agora se tornado parte “de um processo anfíbio de
articular movimentos e códigos culturais de diferentes procedências;
passamos do folclore à mestiçagem” (1). O Brasil, hoje em dia, é visto
como um dos mais importantes lugares a serem visitados por grafiteiros de
todo o mundo, em busca de intercâmbio artístico e inspiração. (2)
Nesse aqui e nesse agora principia algo
A poesia, assim como a música, é uma arte temporal (o poema precisa ser
lido seqüencialmente, ao longo do tempo), ao passo que as artes visuais,
de uma forma geral, pertenceriam à esfera do espaço. Porém, devido às suas
características próprias de manifestação - no calor do momento, na
urgência da rua - o graffiti, embora se apresente como uma arte visual,
incorpora uma forte marca de temporalidade.
Por outro lado, embora seja lido no tempo, o poema é imediato: ele provoca
a vivência de uma experiência, e nunca se desgasta . É tempo sempre
presente. Para Octavio Paz, “o poema é mediação entre uma experiência
original e um conjunto de atos e experiências posteriores, que só adquirem
coerência e sentido com referência a essa primeira experiência que o poema
consagra. O tempo cronológico - a palavra comum, a circunstância social ou
individual - sofre uma transformação decisiva: cessa de fluir, deixa de
ser sucessão (...) O poema traça uma linha divisória que separa o instante
privilegiado da corrente temporal. Nesse aqui e nesse agora principia
algo”(9)
O graffiti é arte acontecendo velozmente, no tempo, debaixo do nosso
olhar. O tempo se condensa e a pintura se materializa quase que
instantaneamente. No poema as coisas são “uma presença instantânea e
total, que fere de um golpe a nossa atenção. O poeta não descreve a
cadeira: coloca-a diante de nós”, diz Paz . Também nisso o graffiti se
aproxima da poesia.
Por essa sua característica de instantaneidade, aliada à velocidade da
execução, o graffiti mantém uma vitalidade ímpar, mais próxima da
experiência poética. Ao nos provocar essa “suspensão do tempo” (ainda
segundo Paz), o poema nos vitaliza: não exatamente reconstituindo a
experiência, mas permitindo-nos vivê-la no momento presente. E, ainda
assim, outra e outra vez, como “algo que volta a acontecer tão logo os
lábios de alguém pronunciam os velhos hexâmetros, algo que está sempre
começando e não cessa de se manifestar”.
Para além da simultaneidade, seu vigor talvez derive do fato de que sua
execução, artisticamente falando, esteja mais próxima do esboço do que da
tela pronta. Explico melhor: certa vez, a pintora portuguesa Paula Rego
encontrava-se numa fase de bloqueio criativo. Lembrando-se de uma frase do
pintor Walter Sickert - de que, ao enquadrar um esboço, algo do original
passa para a pintura acabada - ela se propôs a fazer o mesmo. Desenhou
diretamente com o pastel sobre o papel, aplicado sobre a tela e laminado
com uma folha de alumínio, para dar suporte leve, mas sólido. E, ao
utilizar esse método espontâneo, reencontrou o caminho de volta até sua
fonte de inspiração. Escreveu ela: “É verdade o que Sickert diz - algo do
espírito do original realmente sobrevive, não me pergunte por quê. Esboços
sempre têm mais vitalidade do que as telas, porque você está descobrindo
as coisas enquanto está fazendo, está aprendendo com os seus erros; ao
passo que o sentido de uma pintura acabada é que não haja mais incerteza.”
(12)
O graffiti nos provoca, além disso, a sensação fantástica de pintar sem
tocar na superfície. Ao usar pincel, caneta, pilot, crayon ou qualquer
outro instrumento para cobrir uma superfície com tinta, podemos contar com
um certo controle do risco. Já no graffiti, o resultado depende
inteiramente da posição da mão, do movimento do dedo, da gradação e da
modulação da intensidade. Quem pinta da maneira tradicional e passa a
grafitar, experimenta imediatamente uma sensação de impotência e
estranhamento, já que tem um contato apenas relativo com o que está
fazendo. Essa perda de domínio, esse desconcerto, talvez possam ser
comparados ao que é provocado em nós pelo poema, pelo uso não-utilitário
que ele faz desta instância cotidiana, que é a linguagem para todos os
seus falantes, e pela própria tensão de linguagem em que opera.
CLAUDIA ROQUETTE-PINTO
é escritora e tradutora carioca. Formou-se em Tradução Literária pela
Puc-Rio e dirigiu, durante cinco anos, o jornal cultural Verve. Tem quatro
livros de poesia publicados, tendo ganhado o Prêmio Jabuti de Poesia, em
2002, com seu livro Corola. Seus poemas foram incluídos em diversas
antologias nacionais e internacionais, e em várias revistas brasileiras e
estrangeiras.
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