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diários do graffiti II



 


Banksy - Ratos de Rodapé

Uma fileira de chimpanzés cabisbaixos, vestidos como homens-sanduíche, em cujos cartazes está escrito: “Vão rindo agora, mas um dia estaremos no poder”. Esta cena, com toda a sua carga de ironia política, não é uma propaganda da mais recente seqüência de um filme de ficção científica dos anos 80. Ela está estampada em um trem que circula nos arredores de Londres. Seu autor responde apenas pelo nome de Banksy, e, embora ninguém saiba sua verdadeira identidade, é um dos mais conhecidos artistas de rua do mundo. Seus trabalhos, inevitavelmente carregados de conteúdo social, questionadores diante das idéias de autoridade e poder, estão espalhados por todos os cantos da cidade. São dele os (agora já populares) stencils da dupla de policiais ingleses enlaçados num beijo ardente; assim como os “ ratos de rodapé” - que ora aparecem, tais quais proper englishmen, portando um sisudo conjunto de maleta e guarda-chuva, ora podem ser vistos, munidos de alto-falantes, “protestando” próximos à entrada da Associação Britânica para Surdo-Mudos... Sarcástico e provocativo, Banksy já realizou ações tão ousadas quanto grafitar, sob o olhar atônito de uma patrulha de fronteira, o muro que separa Israel do território palestino. Ou adentrar o British Museum, de bigode falso, sobretudo e chapeuzinho pied-de-coq, para ali instalar uma réplica da Mona Lisa - com o detalhe de que, no lugar do rosto da célebre personagem, o artista pintou uma carinha da Smiley, aquele ícone sorridente das mensagens de e-mail.

Trocar o rosto da Mona Lisa por um ícone da Internet. Procedimentos como este, de apropriação de elementos da cultura de massa pela “alta arte” não são mais nenhuma novidade, já tendo sido adotados, entre outros movimentos, pela Pop Art (apenas para ficar em dois dos exemplos mais célebres, citemos as latas de sopa Campbell’s, de Andy Warhol e as telas de Roy Lichtenstein, que se utilizava da linguagem das HQs). Mas, neste caso, talvez o gesto represente um passo além, ao propor uma fusão completa, e de mão dupla, desses mesmos elementos, uma completa e irreverente inclusão (e confusão) de uns nos (e pelos) outros.

A falta de cerimônia, a abordagem anárquica dos elementos formadores de sua própria cultura, a perda de fronteiras rigidamente delimitadas - sejam elas fronteiras sociais ou geográficas - a apropriação do espaço público, a contravenção, a busca por uma excelência de execução artística frente à uma urgência temporal e física – todas essas são algumas das características e dos desafios do graffiti, que o tornam uma forma de arte das mais instigantes e mais sintonizadas com a sensibilidade urbana contemporânea.
 



Mestiçagem


O graffiti, como é conhecido hoje, desenvolveu-se originalmente no final da década de 70, em Nova Iorque e na Filadélfia, quando artistas começaram a pintar seus nomes em paredes ou estações de metrô nos arredores de Manhattan. A mistura de culturas em estreitíssima convivência, típica de uma metrópole como Nova Iorque _ onde os guetos do Harlem e o mundo glamuroso da Broadway e de Wall Street convivem lado a lado_ propiciou um terreno fértil para os primeiros artistas desta arte das ruas. Num curto espaço de tempo, a quantidade de jovens pintando seus nomes (tags) por toda a cidade levou-os a tentarem desenvolver novas maneiras de ganhar destaque. As tags foram ficando cada vez maiores, até que as primeiras “peças” (em inglês pieces, abreviação de masterpieces, ou obras de arte) começaram a aparecer nos trens. Dizem que, em meados da década de 80, já não havia na cidade um único trem que não tivesse sido pichado, de cima a baixo, pelo menos uma vez.

Conforme a linguagem do graffiti se desenvolvia e os artistas adquiriam mobilidade, o fenômeno foi se espalhando pelo país, posteriormente alcançando a Europa. Ao mesmo tempo, as primeiras exposições, aqui e ali, começavam a acontecer. No entanto, foi somente com o advento do movimento Hip-Hop que esta cultura penetrou em quase todos os países ocidentais.

Na América do Sul, o graffiti já nasceu sob o impacto dos problemas sociais e econômicos, do tráfico de drogas e de conflitos armados decorrentes das guerras de facção. E, do mesmo modo como no início do movimento em Nova Iorque, o graffiti sul-americano tem como seus expoentes artistas nascidos nos subúrbios e comunidades carentes, o que o leva a refletir, em sua temática, uma forte oposição às classes dominantes e uma visão bastante crítica das estruturas de poder.

Em seu Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade esperava que tendências mundiais das artes viessem a gerar versões brasileiras das mais inovadoras e surpreendentes. O Brasil pode se orgulhar de apresentar, no cenário do graffiti mundial, uma face única e exuberante. Se no passado os grafiteiros brasileiros voltavam os olhos para os Estados Unidos e para a Europa, sendo relativamente influenciados por esses ambientes artísticos, a dificuldade em obter informações consistentes sobre o que acontecia lá fora, somada à escassez de recursos materiais por parte dos artistas (falta de verbas, dificuldade de importação de tintas apropriadas, repressão policial, etc.), acabou levando-os a desenvolver novos estilos e técnicas. O uso do rolinho para cobrir grandes extensões, que depois são contornadas pelo spray (medida que se tornou necessária por razões econômicas), por exemplo, é um recurso próprio do graffiti nacional – além de ser uma resposta adequada às nossas dificuldades - como tantas outras práticas cotidianas em nosso país, baseadas na adaptação e no improviso. Esse período de relativo isolamento, seguido pela recente abertura para o contato internacional - possibilitada, entre outros fatores, pela crescente inclusão digital - foi responsável pela criação de uma cena artística muito particular, dona de seus próprios (e inusitados) recursos e mensagens. É possível que o graffiti nacional, de modismo inicialmente importado, tenha agora se tornado parte “de um processo anfíbio de articular movimentos e códigos culturais de diferentes procedências; passamos do folclore à mestiçagem” (1). O Brasil, hoje em dia, é visto como um dos mais importantes lugares a serem visitados por grafiteiros de todo o mundo, em busca de intercâmbio artístico e inspiração. (2)

 


Nesse aqui e nesse agora principia algo


A poesia, assim como a música, é uma arte temporal (o poema precisa ser lido seqüencialmente, ao longo do tempo), ao passo que as artes visuais, de uma forma geral, pertenceriam à esfera do espaço. Porém, devido às suas características próprias de manifestação - no calor do momento, na urgência da rua - o graffiti, embora se apresente como uma arte visual, incorpora uma forte marca de temporalidade.

Por outro lado, embora seja lido no tempo, o poema é imediato: ele provoca a vivência de uma experiência, e nunca se desgasta . É tempo sempre presente. Para Octavio Paz, “o poema é mediação entre uma experiência original e um conjunto de atos e experiências posteriores, que só adquirem coerência e sentido com referência a essa primeira experiência que o poema consagra. O tempo cronológico - a palavra comum, a circunstância social ou individual - sofre uma transformação decisiva: cessa de fluir, deixa de ser sucessão (...) O poema traça uma linha divisória que separa o instante privilegiado da corrente temporal. Nesse aqui e nesse agora principia algo”(9)

O graffiti é arte acontecendo velozmente, no tempo, debaixo do nosso olhar. O tempo se condensa e a pintura se materializa quase que instantaneamente. No poema as coisas são “uma presença instantânea e total, que fere de um golpe a nossa atenção. O poeta não descreve a cadeira: coloca-a diante de nós”, diz Paz . Também nisso o graffiti se aproxima da poesia.

Por essa sua característica de instantaneidade, aliada à velocidade da execução, o graffiti mantém uma vitalidade ímpar, mais próxima da experiência poética. Ao nos provocar essa “suspensão do tempo” (ainda segundo Paz), o poema nos vitaliza: não exatamente reconstituindo a experiência, mas permitindo-nos vivê-la no momento presente. E, ainda assim, outra e outra vez, como “algo que volta a acontecer tão logo os lábios de alguém pronunciam os velhos hexâmetros, algo que está sempre começando e não cessa de se manifestar”.

Para além da simultaneidade, seu vigor talvez derive do fato de que sua execução, artisticamente falando, esteja mais próxima do esboço do que da tela pronta. Explico melhor: certa vez, a pintora portuguesa Paula Rego encontrava-se numa fase de bloqueio criativo. Lembrando-se de uma frase do pintor Walter Sickert - de que, ao enquadrar um esboço, algo do original passa para a pintura acabada - ela se propôs a fazer o mesmo. Desenhou diretamente com o pastel sobre o papel, aplicado sobre a tela e laminado com uma folha de alumínio, para dar suporte leve, mas sólido. E, ao utilizar esse método espontâneo, reencontrou o caminho de volta até sua fonte de inspiração. Escreveu ela: “É verdade o que Sickert diz - algo do espírito do original realmente sobrevive, não me pergunte por quê. Esboços sempre têm mais vitalidade do que as telas, porque você está descobrindo as coisas enquanto está fazendo, está aprendendo com os seus erros; ao passo que o sentido de uma pintura acabada é que não haja mais incerteza.” (12)

O graffiti nos provoca, além disso, a sensação fantástica de pintar sem tocar na superfície. Ao usar pincel, caneta, pilot, crayon ou qualquer outro instrumento para cobrir uma superfície com tinta, podemos contar com um certo controle do risco. Já no graffiti, o resultado depende inteiramente da posição da mão, do movimento do dedo, da gradação e da modulação da intensidade. Quem pinta da maneira tradicional e passa a grafitar, experimenta imediatamente uma sensação de impotência e estranhamento, já que tem um contato apenas relativo com o que está fazendo. Essa perda de domínio, esse desconcerto, talvez possam ser comparados ao que é provocado em nós pelo poema, pelo uso não-utilitário que ele faz desta instância cotidiana, que é a linguagem para todos os seus falantes, e pela própria tensão de linguagem em que opera.
                                           

 

 

CLAUDIA ROQUETTE-PINTO é escritora e tradutora carioca. Formou-se em Tradução Literária pela Puc-Rio e dirigiu, durante cinco anos, o jornal cultural Verve. Tem quatro livros de poesia publicados, tendo ganhado o Prêmio Jabuti de Poesia, em 2002, com seu livro Corola. Seus poemas foram incluídos em diversas antologias nacionais e internacionais, e em várias revistas brasileiras e estrangeiras.

 


 

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