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márcio-andré


estou no Google, logo existo (II)

 

 

 

Se podemos indicar um instrumento que substituiria hoje, com larga vantagem, a antiga arte oracular, este certamente seria o buscador Google. Desde 1998, este tem sido a principal ferramenta de todo internauta que queira encontrar qualquer coisa a partir de palavras chaves. Tornou-se uma ferramenta tão imprescindível que é realmente difícil imaginar a navegação sem este recurso. Não que não houvesse outros buscadores anteriormente a sua criação, mas o Google, devido a diversas inovações na maneira de fazer a busca, e, a despeito de sua juventude, é de fato o mais dinâmico e eficaz deles, tendo criado uma verdadeira revolução nos hábitos dos navegantes. Sua eficácia é tanta que por vezes passa a delimitar alguns aspectos da própria realidade. Quem nunca testemunhou fatos onde se decide a importância, ou mesmo, a existência de algo ou alguém, pela quantidade de resultados da busca – a partir da qual, o que não se encontra catalogado ali, perde sua credibilidade e corre o risco de ser desqualificado existencialmente. Talvez, o mais assustador nisso tudo, seja a possibilidade de alguns dos milhares de anônimos e desprovidos googais, procurar seu nome e, não achando, duvidar de si mesmo. Eis que como um cogito da contemporaneidade, nos deparamos com uma absurda paráfrase de Descartes, onde a máxima “dubito ergo cogito; cogito ergo sum” (duvido logo penso; penso logo existo) se transforia em “dubito ergo Google consulo, in Google sum ergo sum” (duvido logo consulto o Google; estou no Google logo existo). Assim, estamos diante de uma ferramenta poderosa de nossa era de silício e plasma, com poderes quase divinatórios para responder a tudo o que se pergunte. Porém, ao contrário das do Templo de Apolo, as questões direcionadas ao nosso “sabe tudo” são menos “épicas”, mais condizentes com o presente – menos voltadas para o destino, pessoal ou coletivo, do que para questões práticas da vida cotidiana. Ao invés de perguntas bestas como “eu devo invadir a Pérsia?”, feita por Creso, rei de Lídia, perguntamos: “como colocar um DVD no youtube?” ou “Qual carro devo comprar: Marea ou Civic?”. Diferentes são as dimensões entre as perguntas de hoje e de ontem, mas os resultados do Google, em larga escala, afetam os destinos de nações e tiranos, pois todos estes dependem de instituições de pesquisa ou da resolução de dúvidas cotidianas que, em maior ou menor grau, se valem cada vez mais da ferramenta para serem resolvidas rapidamente. Comecei a perceber que o Google certamente poderia responder a perguntas menos práticas, mais metafísicas e profundas. Porém seria preciso algum talento para interpretar as respostas, visto que, a essas perguntas, elas serão mais enigmáticas, como são a dos oráculos tradicionais (e não temo dizer que em breve haverão sacerdotes especializados no Google, plenos de entusiasmo para interpretar, através da corporificação do deus, as perguntas dos aflitos). Não penso ser isso um absurdo, uma vez que o Google é também uma ferramenta similar, ainda que infinitamente mais complexa, a uma carta ou uma moeda. O que os diferenciaria, entretanto, seria, não a máquina em si, mas o pensamento pragmático, dentro de uma realidade dessacralizada, que a pensou e a construiu. Consequentemente, o fato de estar calcada em bases de banco de dados, seria o que mais o distanciaria em relação ao oráculo, que trabalha com princípios mais poéticos que não o da coleta de informações. Em outras palavras: não se poderia exigir de um produto do utilitarismo científico, onde a destinação e a providência não encontram terrenos, que intermedeie homens e deuses. Esse argumento, por si só, já seria o suficiente para destituir o Google desse poder. Mas ainda assim, o Google continua máquina, tão humana e poética em sua essência quanto uma moeda ou uma carta. E basta se abrir ao que ele pode oferecer de absurdo e anti-lógico, para transformar seu princípio de conexões binárias no tabuleiro de um jogo que captura as mais infindáveis combinações de escritos e imagens, colocadas por anônimos do mundo inteiro em um arquivo abstrato do inconsciente coletivo, e que revelam as mais profundas verdades, tiradas das entranhas da terra, das entrelinhas de todos os saberes e mentiras – uma polifonia de vozes, prestes a dizer o destino de cada um de nós. Então, em certa noite de insônia, eu fiz o teste, e perguntei ao Google: devo publicar um livro com os meus escritos da rede?, ao que ele respondeu:

O exemplo dos cordelistas deve ser seguido. Eles fazem dos seus próprios versos, ..... O livro traz um apanhado dos meus escritos a partir de 2002, ...

Afirmei, ao invés de sugerir, que o texto dela foi escrito com pressa, .... Publicar um livro, ou mesmo que seja algum texto na internet, é arriscado. ...

e a encher gavetas e mais gavetas (ainda que virtuais) com meus escritos. Não sei que tipo de livro o rapaz escreveu, tampouco sei se tem alguma qualidade ...

É o leitor do Paulo Coelho que diz que se deve publicar Paulo Coelho. ... Os meus livros explicitam a manipulação do leitor até quase o grotesco. ...
Há algum tempo eu passei a publicar meus contos em um site chamado .... Adoro deitar na rede e ter um livro nas mãos em vez do note book……..por exemplo… ...

Para mim, o objetivo de um escritor não deve ser publicar um livro, .... Na rede há. E, o melhor, o seu post não necessariamente depende de uma notícia para ...

Estas palavras já não pertenciam mais a nenhum de seus autores, não eram frases soltas de falas específicas, mas uma combinação cósmica. Nesta confusão de fragmentos, o resultado pode parecer enigmático e contraditório, mas qualquer um que já tenha lidado com oráculos, seja i-ching, tarô, runas ou búzios, sabe que nenhum deles dá respostas diretas, mas falas ambíguas que permitem novas cogitações e reflexões sobre o questionado. E a conclusão a qual cheguei, após muito refletir sobre a resposta que recebi era a de que eu deveria esperar mais algum tempo até publicar este livro. Conselho, aliás, que não segui. Infelizmente, a teimosia humana é algo que não mudou desde as tragédias clássicas.

 

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MÁRCIO-ANDRÉ
é poeta, ensaísta e editor, autor dos livros Movimento Perpétuo e Intradoxos e coordenador do projeto Arranjos para Assobio, de texturas poéticas e realidades experimentais (http://arranjos.confrariadovento.com). Trabalha na tradução de poesia de Serge Pey, Ghérasim Luca e Bernard Heidsieck. Sua página é www.marcioandre.com

 


 

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