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silviano santiago


a França entre a Brazil Railway e o Contestado, entre
o café e o Modernismo

   



É preciso compreender o Modernismo com

suas causas materiais e fecundantes,

hauridas no parque industrial de São Paulo,

com seus compromissos de classe no período

áureo-burguês do primeiro café valorizado [...].

O Modernismo é um diagrama da alta do café,

da quebra e da revolução brasileira.


Oswald de Andrade, “O caminho percorrido”,

Belo Horizonte, 1944



A história da literatura (ou das artes em geral) não se escreve todo o tempo pelo relato dos acontecimentos restritos ao campo específico de atuação dos artistas e dos intelectuais. Muitas vezes escritores de culturas nacionais distantes se aproximam, trocam idéias e mutuamente se influenciam graças às artimanhas do acaso, que nem do acaso são, se abandonamos a visão parcial que nos é dada pela história literária e nos adentramos por um olhar abrangente que descortina o modo como nações se juntam através das relações políticas e econômicas, tendo às vezes, na qualidade de mediadores, intelectuais de envergadura que ocupam postos diplomáticos.


Tomemos o notável livro de Mário da Silva Brito, intitulado Antecedentes da Semana de Arte Moderna, como exemplo da falácia da história literária que se escreve apenas pela descrição do mundo restrito das artes. Ali estão relacionados com prudência e seriedade, ano a ano, os muitíssimos acontecimentos culturais e artísticos que o pesquisador julgou significativos para se compreender a motivação maior por detrás da eclosão da Semana de Arte Moderna em 1922, na cidade de São Paulo. Escolhamos um ano preciso para iniciar a nossa aventura pelos antecedentes levantados por Brito – o de 1917.


Corretamente, Mário da Silva Brito assinala que o evento artístico mais marcante daquele ano foi a Exposição de Anita Malfatti, jovem pintora paulista com aperfeiçoamento no estrangeiro. No salão cedido pelo Conde Lara, à Rua Líbero Badaró, nº. 111, inaugurou-se na tarde de 12 de dezembro de 1917, a mostra com 53 trabalhos da artista. Afirma Brito que “pela exposição, em dias subseqüentes, vão desfilando, ao lado dos respeitáveis burgueses, da grã-finagem de então e dos artistas acadêmicos, os jovens que mais tarde comporiam o grupo modernista”. O agrupamento dos jovens é o que demonstra maior simpatia pelo trabalho da artista e é liderado por dois poetas estreantes, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, cujo papel na literatura brasileira transcenderá de muito a atuação deles naquele lugar e data.


A artista não poderia esperar que das expressões às vezes elogiosas, às vezes espantadas dos numerosos e variados visitantes brotasse no jornal O Estado de São Paulo, do dia 20 de dezembro, um violento e desaforado artigo de Monteiro Lobato, então travestido de crítico de arte. O artigo intitulava-se “Paranóia ou mistificação?”. Desde o título, o compte-rendu da exposição feito pelo autor de Urupês humilhava e, ao mesmo tempo, canonizava para todo o sempre a pintura vanguardista de Anita Malfatti. Monteiro Lobato não escondia o escândalo que causava ao desancar não só os trabalhos da pintora, como também todos os movimentos de vanguarda então em voga (“futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti”, segundo a expressão do crítico). Escreve: “Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética. Há de irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas”.


Mário da Silva Brito nos lembra ainda que, ainda no ano de 1917, Mário de Andrade publica, com o pseudônimo de Mário Sobral, Há uma gota de sangue em cada poema, seu “primeiro e detestável livro” (palavras do próprio autor). Manuel Bandeira, mais experiente e no Rio de Janeiro, faz bonito com a sua coleção de poemas pré-modernos Cinza das horas. Outros jovens poetas também aparecem na cena paulista. Menotti del Picchia com Juca Mulato e Guilherme de Almeida com s. Muitas outras estréias literárias e outros eventos de menor monta são também arrolados pelo historiador, mas nenhum teve a repercussão e as conseqüências futuras da Exposição de Anita Malfatti.


Por um momento, retiremos nossos olhos da cidade de São Paulo em 1917. Neste mesmo ano, caminhemos pela Praia do Flamengo na cidade do Rio de Janeiro, então capital do país. Na Rua Paissandu, dobremos à direita. Num belo sobrado estilo lusitano, atrás do gramado verde, onde se agigantam três palmeiras, está situada a Légation de France au Brésil. No dia 1º de fevereiro de 1917, o poeta e dramaturgo Paul Claudel e o músico e compositor Darius Milhaud tomaram assento na bela mansão da Rua Paissandu. O primeiro é “Ministro”, para utilizar o jargão técnico, e tinha sido nomeado pelo Quai d’Orsay como Encarregado dos Negócios da França no Brasil, a fim de substituir Jules Chevalier, técnico em economia. O segundo fora escolhido pelo próprio Claudel para ser não só seu secretário na Legação, como também o responsável pelo serviço de propaganda (estamos em plena Primeira Grande Guerra). Ambos não estão presentes no livro de Mário da Silva Brito.


Escreve o diplomata Henri Hoppenot: “Depuis le Comte de Gobineau, dont la mission remontait à 1870, notre légation au Brésil n’avait, à de rares exceptions près, reçu pour titulaires que de vieux agents fatigués et proches de la retraite. La désignation de Claudel rompait avec cette tradition”.


Portanto, Paul Claudel e Darius Milhaud não viajam ao Brasil para dedicar tempo integral às suas próprias e respectivas atividades artísticas. Até fins de 1918, quando deixam o Rio de Janeiro, ambos estarão consagrando grande parte das atividades profissionais ao delicado trabalho diplomático junto ao governo brasileiro, junto às multinacionais de construção ferroviária e às grandes empresas nacionais de exportação do café. Como se verá, os dois acabam por sanar as dificuldades que França e Brasil encontram no plano político e econômico, buscando uma mistura fina para o bem-estar das iniciativas públicas e privadas durante a Primeira Grande Guerra.
 

Como se verá ainda, ambos acabam por exercer uma atividade mais grandiosa e subterrânea no campo das artes que, infelizmente, acabou sendo esquecida por Mário da Silva Brito. No plano artístico, o poeta e o compositor indiretamente ajudaram as culturas francesa e brasileira a se abraçarem, levando-as a retomar antigos relacionamentos e a fundamentar novos e definitivos contatos. Não menos importante, os dois diplomatas – junto à Companhia Prado Chaves, exportadora de café – ajudaram a fertilizar o solo cafeicultor paulistano, sendo responsáveis pelo fim dado à paralisia que tomava conta do setor exportador brasileiro.


Retomando o trecho em epígrafe de Oswald de Andrade, retirado da conferência que fez em 1944, na cidade de Belo Horizonte, somos levados a confirmar que é no solo das fazendas paulistas e nos depósitos de café da cidade de Santos que se situa uma das “causas materiais e fecundantes” do Modernismo brasileiro, “com seus compromissos de classe no período áureo-burguês do primeiro café”. Acrescentemos o óbvio: nem sempre as intenções comerciais dos franceses e brasileiros foram as melhores, mas não se pode esquecer que é o inferno, e não o paraíso, que está pavimentado de boas intenções.


Recapitulemos a paisagem histórica da época. A Europa está em guerra. Muitos e bons intelectuais brasileiros são germanófilos e o serão até o momento em que o Brasil, ao ter três navios da marinha mercante torpedeados, rompe relações diplomáticas com a Alemanha. Em momento tão grave, não é gratuita a indicação de figuras do alto porte de Claudel e Milhaud para postos em país periférico. O esforço de guerra aliado logo transforma o salão de baile da Legação francesa em salão beneficente de costura. No ar, há mais do que a ameaça dos bombardeios Gotha G. IV e, no mar, mais do que submarinos traiçoeiros. O senhor Ministro vem ao Brasil com a incumbência de liquidar, com urgência, a dívida contraída pela Brazil Railway, um enorme conglomerado de empresas financeiras, comerciais e industriais com ramificações pela região sul do país, que – segundo a versão européia – engolia anualmente alguns milhares de francos-ouro da poupança francesa e belga.


A história da Brazil Railway não é simples e data de 1887, quando o engenheiro João Teixeira Soares projetou o traçado pelo interior do país duma estrada de ferro com 1403 quilômetros de extensão, que ligaria Itararé, em São Paulo, a Santa Maria, no Rio Grande do Sul. O governo federal encampou a companhia original em 1904, transferindo-a para o governo estadual. Dois anos depois, este a arrendou a um consórcio franco-americano liderado por Percival Farquhar (nosso conhecido da estrada de ferro Madeira-Mamoré). A construção da estrada de ferro passou a ser parte integrante da empresa Brazil Railway, que virá a pedir concordata em 1917, não por coincidência ano em que Claudel chega ao Brasil. Concordata, lembremos, é o acordo que o comerciante insolvente faz com a maioria ou a totalidade de seus credores, para evitar a declaração da sua falência.


Um dos ganhos mais espetaculares da Brazil Railway é o direito à posse de 15 quilômetros de terra para cada lado dos trilhos. Para trabalhar na construção da estrada e ainda na terra ganha por direito contratual, a empresa tinha contratado e trazido para a região sul do país oito mil trabalhadores, em particular imigrantes italianos e alemães, que se juntaram aos nativos. Seis mil deles foram dispensados em 1912.


Nas desavenças originadas entre caipiras e imigrantes, no desemprego e na questão da terra, é que, no ano de 1912, eclode na região sul do Brasil a luta contra os poderosos e contra o exército brasileiro que vem em sua ajuda. Esse movimento de “rebeldes primitivos” (Eric Hobsbawn), de fundo místico, envolveu quarenta mil habitantes da região e deixou ao final, como saldo, oito mil mortos. Passou para a história nacional como a Guerra do Contestado, um similar do movimento de Canudos, com contexto econômico mais definido.


Claudel chega ao Brasil logo depois que o mundo oficial dá como terminado o conflito do Contestado, embora tenha visto na viagem de inspeção que fará e anotado no seu Diário traços distintos do clima de selvageria então dominante. Lê-se no Diário: “Arrêté em pleine forêt à minuit par des insurgés politiques (Ismael Martins, le Colonel S., le chef de brigands Gonzalve à la Dent d’or!)”. O interesse primordial da diplomacia francesa nos trópicos é o de retirar o mais rapidamente possível a nação européia da empresa franco-americana liderada por Farquhar, então já dominada pela corrupção e em concordata. Claudel tinha fama de diplomata habilidoso e pragmático. Além dos numerosos contatos sociais e de amizade que fez no Rio e em São Paulo, decide tomar o trem de ferro no dia 17 de julho de 1917 e fazer a viagem por todo o sul do país que seria proporcionada a todos os futuros usuários pela Brazil Railway. Retorna ao Rio no dia 2 de agosto. No prefácio à correspondência Paul Claudel-Darius Milhaud, escreve Henri Hoppenot, seu subordinado na Legação:


Sur le plan des affaires, Claudel forma le vœu d’aller vérifier sur place l’existence de ces chemins de fer pour la construction desquels l’épargne française avait, si ingénieusement, été sollicitée. Les promoteurs de l’entreprise s’empressèrent de lui en fournir les moyens. Par train spécial ou par train ordinaire, il sillonna pendant des jours, avec Milhaud, ces étendues désertes, où la forêt quasi vierge et bruissante de perruches succédait aux broussailles des plateaux. Le convoi marchait au feu de bois, s’arrêtant à intervalles réguliers pour se ravitailler à coups de hachette, au bord de la voie. Pour leur épargner l’intolérable fumée produite par ce combustible, un banc leur avait été installé, au-dessous des butoirs de l’engin. Une photographie les montre, inconfortablement assis, l’un à côté de l’autre, à l’avant de la locomotive, parfaitement heureux.


Em menos de dois anos o Encarregado dos Negócios da França no Brasil fez jus ao nome que tinha. Através de demoradas e efetivas negociações com políticos, parlamentares brasileiros e a elite industrial e latifundiária, ele conseguiu sanar o problema, assinando em dezembro de 1917 um “convênio” entre os dois governos. Os outros signatários são Antônio Carlos, Ministro das Finanças, Antônio Lage e Paulo Prado, conhecido cafeicultor paulista, futuro mecenas do Modernismo e autor do clássico Retrato do Brasil (1928).


Pela “dívida” da Brazil Railway, o Brasil se obrigava a entregar à França trinta navios alemães, que tinham sido confiscados pelo governo brasileiro. Eram embarcações de grande porte que estavam nos portos quando as relações diplomáticas entre o Brasil e a Alemanha foram rompidas. Em “troca”, a França se comprometia a nos comprar dois milhões de sacas de café, transação que seria feita sob a responsabilidade da firma Prado Chaves, de São Paulo, cujo diretor era Paulo Prado. A firma exportadora de café atravessava então comprometedora situação financeira. Tadeu Nogueira, secretário da Associação Comercial de Santos, enviará à firma, no dia 2 de janeiro de 1918, efusivo telegrama em que cumprimenta o seu diretor pelos benefícios que resultarão da aquisição pela França de dois milhões de sacas de café.


Não é difícil traçar o perfil do múltiplo Paulo Prado. Ei-lo tal como foi esboçado por Maria Teresa de Freitas em livro de homenagem ao escritor Blaise Cendrars: “Important homme d’affaires pauliste du début du siècle, devenu dans les années 20 le “roi du café” brésilien, Paulo Prado était aussi – voire surtout – un moderniste au Brésil, un des promoteurs de la Semaine d’Art Moderne de 1922, l’auteur de maintes entreprises culturelles et politiques de la plus haute valeur dans le panorama socio-culturel et historique de l’époque”.


1917, Rio de Janeiro. No percurso histórico paralelo à Exposição de Anita Malfatti em São Paulo, encontra-se a viagem de Claudel e Milhaud ao Rio, o apoio dado pela França ao Brasil na luta a favor dos aliados, a solução que os diplomatas encontram para saldar a “dívida” brasileira e salvar a economia cafeeira do brejo em que se encontrava no porto de Santos. Se continuarmos a perseguir a associação do café ao Modernismo brasileiro e acatarmos a companhia de Alexandre Eulálio, encontraremos pela frente um outro e importantíssimo personagem no desenvolvimento do nosso principal movimento de vanguarda, o franco-suíço Blaise Cendrars. O mesmo Paulo Prado, signatário do convênio e diretor da firma Prado Chaves, será o responsável financeiro pelas três importantíssimas viagens que o poeta fez ao Brasil. Em carta que Cendrars escreve ao amigo Prado, logo depois da sua primeira viagem em 1924, lê-se: “... tout ce que je fais, je le fais en somme sous vos auspices”.


Não se pode esquecer que, durante a primeira estada de Blaise Cendrars entre nós, os modernistas se adentraram na Semana Santa pelo interior do Brasil, em viagem a Minas Gerais, a fim de conhecer e mostrar ao estrangeiro as cidades históricas da região. O crítico Brito Broca foi quem primeiro chamou a atenção para “a atitude paradoxal” dos viajantes modernistas em 1924. Escreveu ele: “São todos modernistas, homens do futuro. E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os espíritos conformistas, o que vão eles mostrar? As velhas cidades de Minas, com suas igrejas do século 18, seus casarões coloniais e imperiais, numa paisagem tristonha, onde tudo é evocação do passado e, em última análise, tudo sugere ruínas”.


A leitura da implantação do espírito de vanguarda nos trópicos não deve camuflar o modo de vida paradoxal do Modernismo, pelo contrário deve exibir a “lógica interior” do movimento. Continua Brito Broca: “O divórcio em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernistas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam”. Nas montanhas de Ouro Preto, o primitivismo de Picasso encontrava o autodidatismo de Aleijadinho, sob o olhar matreiro de Blaise Cendrars.


Uma leitura cuidadosa do Journal de Paul Claudel, no mesmo ano de 1917, fará entrar na lista dos antecedentes do movimento modernista um outro personagem francês, que terá enorme poder de decisão no momento da formação moderna do pensamento universitário brasileiro. Trata-se de George Dumas, que Claudel encontra no Rio de Janeiro em julho/agosto. George Dumas é filósofo e médico e estava no Rio de Janeiro para a fundação de um instituto franco-brasileiro, se não me engano o Lycée Français, da rua das Laranjeiras, de tão grata memória para tantos cariocas e brasileiros. A passagem em questão do Journal é comovente e vale a pena ser citada, como complemento ao clima da época. Claudel relata parte do diálogo com Dumas, em particular o momento em que este fala de um antigo aluno “d’une magnifique intelligence et d’un grand avenir”, que tinha lhe dito: “Je plains ceux qui n’ont à donner que leur vie pour la France”. Esse aluno tinha perdido a vida na guerra européia.


Por ocasião da fundação da Universidade de São Paulo, será George Dumas o professor a ser acionado em Paris pela elite paulista a fim de escolher jovens pesquisadores que se interessavam por participar do quadro de professores estrangeiros da instituição. Segundo o relato de Claude Lévi-Strauss em Tristes trópicos, ele foi despertado num dia de 1934 por um telefonema de George Dumas, que o convidava para ser professor de antropologia em São Paulo, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Relata Lévi-Strauss: “Minha carreira decidiu-se num domingo do outono de 1934, às nove horas da manhã, com um telefonema. ‘Você continua com vontade de fazer etnografia?’ ‘Sem dúvida!’ ‘Então, apresente sua candidatura para professor de sociologia da Universidade de São Paulo. Os arredores [faubourgs] estão repletos de índios, a quem você dedicará os seus fins de semana’”
Antonio Candido relaciona o momento de fundação da USP – bem posterior em data, aclaremos – ao Modernismo inicial. O momento, diz ele, é o da “rotinização do Modernismo”. Aos poucos se transformava “em padrão de uma época o que era considerado manifestação de pequenos grupos vanguardeiros. [...] O excepcional se torna usual, tendendo o que era restrito a se ampliar”.


Prolonguemos nossas digressões sobre a viagem de Paul Claudel e Darius Milhaud por caminhos mais amenos. Qual é a relação que os dois intelectuais mantiveram com o meio sócio-cultural brasileiro? Será que os encontros interculturais proporcionados por artistas em viagem ao estrangeiro abrem um campo de possibilidades que torna possível e produtivo o congraçamento entre pares até então desconhecidos? Será que a viagem ao estrangeiro é a ocasião para que se realize um intercâmbio rentável para as partes, onde os elementos de troca de uma e da outra cultura encontram atores carentes e permeáveis? Seriam diplomatas, em outro e mais gratuito sentido, esses artistas? Será que, dessa operação e graças à sensibilidade e gênio dos envolvidos, elementos culturais heterogêneos se combinaram em produtos homogêneos e híbridos, originais e ricos de seiva?


As respostas às perguntas têm uma premissa inicial contraditória. Dois conterrâneos, Claudel e Milhaud, convivendo diariamente no mesmo local de trabalho, parceiros em antigos, novos e futuros trabalhos artísticos, não se intrometem da mesma forma no novo meio sócio-cultural. Não reagem de maneira semelhante às manifestações que presenciam e não se interessam pelos mesmos intelectuais e artistas brasileiros.


À maneira do xará Paulo Prado, amigo e parceiro nos negócios e autor do célebre Retrato do Brasil, Paul Claudel considera o país “um paraíso de tristeza” [sic]. Mal pisa o solo carioca, já foge para a região serrana, onde passará muitos dos seus dias, ao lado do casal de embaixadores ingleses. O calor senegalesco de fevereiro foi a desculpa para fugir do Rio. Anota que os poetas brasileiros são “uma pequena coleção de canarinhos mecânicos”. Mário de Andrade não dirá melhor sobre os nossos parnasianos. O português é “uma língua que zumbe e assobia”. Diverte-se com causos como o do milionário analfabeto que manda o secretário ler a carta a ele dirigida, exigindo antes que o serviçal tape os ouvidos com algodão. Aprende um provérbio e o anota em português: “Deus escreve direito por linhas tortas”. Este aparecerá como epígrafe da peça Le soulier de Satan. Delicia-se com a expressão “estar metido em camisa de onze varas” (anotada em português), talvez em virtude da etimologia religiosa da expressão e porque ele próprio, desde o dia em que pisou o solo brasileiro, estivesse metido numa dessas camisas.


Ao mesmo tempo, lê e comenta trechos complexos da Bíblia Sagrada e entremeia as leituras com recepções às grandes figuras da arte européia que nos visitam, fugindo da guerra. O famoso Nijinski e a companhia russa de balé, Anna Pavlova e o pianista Arthur Rubinstein. Recebe-os a todos na Legação da Rua Paissandu, transformando passageiramente o “salão de costura” em palco para espetáculos privados. Depois de uma noitada carnavalesca, frenética e alegre, no restaurante Assírio, localizado no porão do Teatro Municipal, anota no Diário: “mulheres dançam de maneira convulsiva e de repente partem da orquestra cantos e risadas de condenados [damnés] que nos dão frio na espinha”. Mau humor maior, impossível. Influenciado pela presença de Nijinski, escreve um balé intitulado inicialmente L’homme et la forêt, depois sintomaticamente mudado para L’homme et son désir.


Já Darius Milhaud escreve que chega ao Rio de Janeiro na época certa. O carnaval sopra “um vento de loucura” sobre a cidade. Entusiasma-se com a beleza da Rua Paissandu e com os cocares das palmeiras esguias. Admira os cordões, o corso, os desfiles dos clubes carnavalescos e, em qualquer praça da cidade, as danças populares. Também freqüenta os bailes carnavalescos dos salões elegantes. Anota o sucesso do samba de Donga, “Pelo telefone”, eleito o melhor do ano. Observa: a música é tocada pelas bandas militares, os orfeões municipais, as pianolas e os gramofones. É assobiado e cantado por todos na rua.


Milhaud fica fascinado pelo ritmo da música popular brasileira. Compra uma grande quantidade de partituras de maxixes e tangos (nome pelo qual era conhecido o chorinho na época). Surpreende-se com o ritmo negro e sofisticado: “há na síncopa uma suspensão imperceptível, uma respiração nonchalante, uma parada ligeira”. Na Legação, ele tira do piano maxixes e tangos, para concluir: “meus esforços foram recompensados”. Admira Ernesto Nazareth, que toca piano em porta de cinema. Anota: “seu toque fluido, impalpável e triste me ajudou também a melhor conhecer a alma brasileira”.


Por outro lado, conhece o diretor do Instituto Nacional de Música, o maestro Henrique Oswald. Na casa deste, encontra não só um outro grande maestro, Francisco Braga, ex-aluno de Massenet, como também um casal de jovens músicos, hoje praticamente desconhecidos do grande público, Oswald Guerra e sua esposa Nininha. Filha do diplomata Leão Veloso, Nininha é “excelente pianista”. Nos salões da burguesia carioca, Milhaud deixa-se impregnar por um ambiente musical europeizado, apaixonado e arrebatador. Para escândalo de algum contemporâneo seu, confessa que é iniciado [sic] por Nininha na música de Erik Satie, compositor que, em 1917, conhecia “muito imperfeitamente”. A quatro mãos, toca com Nininha várias composições e assinala que ela “decifrava admiravelmente bem toda a música contemporânea”.


Por indicação de um colega parisiense, André Messager, Milhaud se interessa também pela música do ítalo-brasileiro Glauco Velásquez (1884-1910). Tanto pela construção como pelo lirismo, aproxima-a da música composta por Guillaume Lekeu. E anota estranha semelhança: “os dois morreram aos 26 anos de idade”. Sai à procura das partituras de Velásquez e o interpreta durante uma conferência que faz no Liceu Francês.


Quando deixa o Rio de Janeiro em fins de 1918, Milhaud anota: “Estava feliz com a idéia de voltar a Paris, de rever parentes e amigos, mas minha alegria estava marcada por certa nostalgia: amava profundamente o Brasil”. Segundo Alexandre Eulálio, “Darius Milhaud foi sem dúvida o primeiro intelectual a despertar a curiosidade de Cendrars pelo Brasil”.


O resto – aliás, o imenso e notável resto – está nas obras originais de Darius Milhaud, como a composição Le Boeuf sur le toit (1919), tendo como inspiração inicial o maxixe O boi no telhado..., de Zé Boiadero. Essa composição musical, por seu turno, servirá para que Jean Cocteau idealize um balé extravagante de mesmo nome, cujo título será emprestado a um cabaré parisiense, que será famoso por lá se tocar e dançar maxixes, tangos argentinos, foxtrotes, one-steps e charletons. Milhaud também compôs a suíte Saudades do Brasil, onde cada composição leva o nome de um bairro carioca. O popular, sofisticado e complexo adubo musical, encontrado na cidade do Rio de Janeiro da época, fez também florir, entre nós, os gênios de dois dos seus melhores amigos brasileiros, Pixinguinha e Villa-Lobos.



SILVIANO SANTIAGO, romancista, contista, poeta, tradutor e um dos mais reconhecidos críticos literários do Brasil, nasceu em 1936, em Formiga, Minas Gerais. Aproximou-se da crítica de arte a partir do cinema, publicando em 1954 O filme musical. Já na juventude, idealizou e colaborou com diversos periódicos literários de vanguarda. Durante sua vida, lecionou e pesquisou nas mais várias universidades, passando pelo Canadá, Novo México, Indiana, Yale, Sorbonne e algumas brasileiras, como PUC e UFF. Ganhador de vários prêmios, tanto por seus romances quanto por sua crítica, tornou-se um nome de referência na crítica brasileira, com livros como Carlos Drummond de Andrade (1976), Uma literatura nos trópicos (1978), Vale quanto pesa (1982), Nas malhas da letra (1989). Na ficção, publicou Em Liberdade (Prêmio Jabuti de Romance), Histórias mal contadas (2005), entre outros.
 


 

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