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silviano santiago
a França entre a Brazil Railway e o
Contestado, entre
o café e o Modernismo
É preciso compreender o Modernismo com
suas causas materiais e
fecundantes,
hauridas no parque
industrial de São Paulo,
com seus compromissos de
classe no período
áureo-burguês do primeiro
café valorizado [...].
O Modernismo é um diagrama
da alta do café,
da quebra e da revolução
brasileira.
Oswald de Andrade, “O caminho percorrido”,
Belo Horizonte, 1944
A história da literatura (ou das artes em geral) não se escreve todo o
tempo pelo relato dos acontecimentos restritos ao campo específico de
atuação dos artistas e dos intelectuais. Muitas vezes escritores de
culturas nacionais distantes se aproximam, trocam idéias e mutuamente se
influenciam graças às artimanhas do acaso, que nem do acaso são, se
abandonamos a visão parcial que nos é dada pela história literária e nos
adentramos por um olhar abrangente que descortina o modo como nações se
juntam através das relações políticas e econômicas, tendo às vezes, na
qualidade de mediadores, intelectuais de envergadura que ocupam postos
diplomáticos.
Tomemos o notável livro de Mário da Silva Brito, intitulado Antecedentes
da Semana de Arte Moderna, como exemplo da falácia da história literária
que se escreve apenas pela descrição do mundo restrito das artes. Ali
estão relacionados com prudência e seriedade, ano a ano, os muitíssimos
acontecimentos culturais e artísticos que o pesquisador julgou
significativos para se compreender a motivação maior por detrás da eclosão
da Semana de Arte Moderna em 1922, na cidade de São Paulo. Escolhamos um
ano preciso para iniciar a nossa aventura pelos antecedentes levantados
por Brito – o de 1917.
Corretamente, Mário da Silva Brito assinala que o evento artístico mais
marcante daquele ano foi a Exposição de Anita Malfatti, jovem pintora
paulista com aperfeiçoamento no estrangeiro. No salão cedido pelo Conde
Lara, à Rua Líbero Badaró, nº. 111, inaugurou-se na tarde de 12 de
dezembro de 1917, a mostra com 53 trabalhos da artista. Afirma Brito que
“pela exposição, em dias subseqüentes, vão desfilando, ao lado dos
respeitáveis burgueses, da grã-finagem de então e dos artistas acadêmicos,
os jovens que mais tarde comporiam o grupo modernista”. O agrupamento dos
jovens é o que demonstra maior simpatia pelo trabalho da artista e é
liderado por dois poetas estreantes, Mário de Andrade e Oswald de Andrade,
cujo papel na literatura brasileira transcenderá de muito a atuação deles
naquele lugar e data.
A artista não poderia esperar que das expressões às vezes elogiosas, às
vezes espantadas dos numerosos e variados visitantes brotasse no jornal O
Estado de São Paulo, do dia 20 de dezembro, um violento e desaforado
artigo de Monteiro Lobato, então travestido de crítico de arte. O artigo
intitulava-se “Paranóia ou mistificação?”. Desde o título, o
compte-rendu
da exposição feito pelo autor de Urupês humilhava e, ao mesmo tempo,
canonizava para todo o sempre a pintura vanguardista de Anita Malfatti.
Monteiro Lobato não escondia o escândalo que causava ao desancar não só os
trabalhos da pintora, como também todos os movimentos de vanguarda então
em voga (“futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti”, segundo a
expressão do crítico). Escreve: “Há de ter essa artista ouvido numerosos
elogios à sua nova atitude estética. Há de irritar-lhe os ouvidos, como
descortês impertinência, esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um
coro de lisonjas”.
Mário da Silva Brito nos lembra ainda que, ainda no ano de 1917, Mário de
Andrade publica, com o pseudônimo de Mário Sobral, Há uma gota de sangue
em cada poema, seu “primeiro e detestável livro” (palavras do próprio
autor). Manuel Bandeira, mais experiente e no Rio de Janeiro, faz bonito
com a sua coleção de poemas pré-modernos Cinza das horas. Outros jovens
poetas também aparecem na cena paulista. Menotti del Picchia com Juca
Mulato e Guilherme de Almeida com Nós. Muitas outras estréias literárias e
outros eventos de menor monta são também arrolados pelo historiador, mas
nenhum teve a repercussão e as conseqüências futuras da Exposição de Anita
Malfatti.
Por um momento, retiremos nossos olhos da cidade de São Paulo em 1917.
Neste mesmo ano, caminhemos pela Praia do Flamengo na cidade do Rio de
Janeiro, então capital do país. Na Rua Paissandu, dobremos à direita. Num
belo sobrado estilo lusitano, atrás do gramado verde, onde se agigantam
três palmeiras, está situada a Légation de France au Brésil. No dia 1º de
fevereiro de 1917, o poeta e dramaturgo Paul Claudel e o músico e
compositor Darius Milhaud tomaram assento na bela mansão da Rua Paissandu.
O primeiro é “Ministro”, para utilizar o jargão técnico, e tinha sido
nomeado pelo Quai d’Orsay como Encarregado dos Negócios da França no
Brasil, a fim de substituir Jules Chevalier, técnico em economia. O
segundo fora escolhido pelo próprio Claudel para ser não só seu secretário
na Legação, como também o responsável pelo serviço de propaganda (estamos
em plena Primeira Grande Guerra). Ambos não estão presentes no livro de
Mário da Silva Brito.
Escreve o diplomata Henri Hoppenot: “Depuis le Comte de Gobineau, dont la
mission remontait à 1870, notre légation au Brésil n’avait, à de rares
exceptions près, reçu pour titulaires que de vieux agents fatigués et
proches de la retraite. La désignation de Claudel rompait avec cette
tradition”.
Portanto, Paul Claudel e Darius Milhaud não viajam ao Brasil para dedicar
tempo integral às suas próprias e respectivas atividades artísticas. Até
fins de 1918, quando deixam o Rio de Janeiro, ambos estarão consagrando
grande parte das atividades profissionais ao delicado trabalho diplomático
junto ao governo brasileiro, junto às multinacionais de construção
ferroviária e às grandes empresas nacionais de exportação do café. Como se
verá, os dois acabam por sanar as dificuldades que França e Brasil
encontram no plano político e econômico, buscando uma mistura fina para o
bem-estar das iniciativas públicas e privadas durante a Primeira Grande
Guerra.
Como se verá ainda, ambos acabam por exercer uma atividade mais grandiosa
e subterrânea no campo das artes que, infelizmente, acabou sendo esquecida
por Mário da Silva Brito. No plano artístico, o poeta e o compositor
indiretamente ajudaram as culturas francesa e brasileira a se abraçarem,
levando-as a retomar antigos relacionamentos e a fundamentar novos e
definitivos contatos. Não menos importante, os dois diplomatas – junto à
Companhia Prado Chaves, exportadora de café – ajudaram a fertilizar o solo
cafeicultor paulistano, sendo responsáveis pelo fim dado à paralisia que
tomava conta do setor exportador brasileiro.
Retomando o trecho em epígrafe de Oswald de Andrade, retirado da
conferência que fez em 1944, na cidade de Belo Horizonte, somos levados a
confirmar que é no solo das fazendas paulistas e nos depósitos de café da
cidade de Santos que se situa uma das “causas materiais e fecundantes” do
Modernismo brasileiro, “com seus compromissos de classe no período
áureo-burguês do primeiro café”. Acrescentemos o óbvio: nem sempre as
intenções comerciais dos franceses e brasileiros foram as melhores, mas
não se pode esquecer que é o inferno, e não o paraíso, que está
pavimentado de boas intenções.
Recapitulemos a paisagem histórica da época. A Europa está em guerra.
Muitos e bons intelectuais brasileiros são germanófilos e o serão até o
momento em que o Brasil, ao ter três navios da marinha mercante
torpedeados,
rompe relações diplomáticas com a Alemanha. Em momento tão grave, não é
gratuita a indicação de figuras do alto porte de Claudel e Milhaud para
postos em país periférico. O esforço de guerra aliado logo transforma o
salão de baile da Legação francesa em salão beneficente de costura. No ar,
há mais do que a ameaça dos bombardeios Gotha G. IV e, no mar, mais do que
submarinos traiçoeiros. O senhor Ministro vem ao Brasil com a incumbência
de liquidar, com urgência, a dívida contraída pela Brazil Railway, um
enorme conglomerado de empresas financeiras, comerciais e industriais com
ramificações pela região sul do país, que – segundo a versão européia –
engolia anualmente alguns milhares de francos-ouro da poupança francesa e
belga.
A história da Brazil Railway não é simples e data de 1887, quando o
engenheiro João Teixeira Soares projetou o traçado pelo interior do país
duma estrada de ferro com 1403 quilômetros de extensão, que ligaria
Itararé, em São Paulo, a Santa Maria, no Rio Grande do Sul. O governo
federal encampou a companhia original em 1904, transferindo-a para o
governo estadual. Dois anos depois, este a arrendou a um consórcio
franco-americano liderado por Percival Farquhar (nosso conhecido da
estrada de ferro Madeira-Mamoré). A construção da estrada de ferro passou
a ser parte integrante da empresa Brazil Railway, que virá a pedir
concordata em 1917, não por coincidência ano em que Claudel chega ao
Brasil. Concordata, lembremos, é o acordo que o comerciante insolvente faz
com a maioria ou a totalidade de seus credores, para evitar a declaração
da sua falência.
Um dos ganhos mais espetaculares da Brazil Railway é o direito à posse de
15 quilômetros de terra para cada lado dos trilhos. Para trabalhar na
construção da estrada e ainda na terra ganha por direito contratual, a
empresa tinha contratado e trazido para a região sul do país oito mil
trabalhadores, em particular imigrantes italianos e alemães, que se
juntaram aos nativos. Seis mil deles foram dispensados em 1912.
Nas desavenças originadas entre caipiras e imigrantes, no desemprego e na
questão da terra, é que, no ano de 1912, eclode na região sul do Brasil a
luta contra os poderosos e contra o exército brasileiro que vem em sua
ajuda. Esse movimento de “rebeldes primitivos” (Eric Hobsbawn), de fundo
místico, envolveu quarenta mil habitantes da região e deixou ao final,
como saldo, oito mil mortos. Passou para a história nacional como a Guerra
do Contestado, um similar do movimento de Canudos, com contexto econômico
mais definido.
Claudel chega ao Brasil logo depois que o mundo oficial dá como terminado
o conflito do Contestado, embora tenha visto na viagem de inspeção que
fará e anotado no seu Diário traços distintos do clima de selvageria então
dominante. Lê-se no Diário: “Arrêté em pleine forêt à minuit par des
insurgés politiques (Ismael Martins, le Colonel S., le chef de brigands
Gonzalve à la Dent d’or!)”. O interesse primordial da diplomacia francesa
nos trópicos é o de retirar o mais rapidamente possível a nação européia
da empresa franco-americana liderada por Farquhar, então já dominada pela
corrupção e em concordata. Claudel tinha fama de diplomata habilidoso e
pragmático. Além dos numerosos contatos sociais e de amizade que fez no
Rio e em São Paulo, decide tomar o trem de ferro no dia 17 de julho de
1917 e fazer a viagem por todo o sul do país que seria proporcionada a
todos os futuros usuários pela Brazil Railway. Retorna ao Rio no dia 2 de
agosto. No prefácio à correspondência Paul Claudel-Darius Milhaud, escreve
Henri Hoppenot, seu subordinado na Legação:
Sur le plan des affaires, Claudel forma le vœu d’aller vérifier sur place
l’existence de ces chemins de fer pour la construction desquels l’épargne
française avait, si ingénieusement, été sollicitée. Les promoteurs de l’entreprise
s’empressèrent de lui en fournir les moyens. Par train spécial ou par
train ordinaire, il sillonna pendant des jours, avec Milhaud, ces étendues
désertes, où la forêt quasi vierge et bruissante de perruches succédait
aux broussailles des plateaux. Le convoi marchait au feu de bois, s’arrêtant
à intervalles réguliers pour se ravitailler à coups de hachette, au bord
de la voie. Pour leur épargner l’intolérable fumée produite par ce
combustible, un banc leur avait été installé, au-dessous des butoirs de l’engin.
Une photographie les montre, inconfortablement assis, l’un à côté de l’autre,
à l’avant de la locomotive, parfaitement heureux.
Em menos de dois anos o Encarregado dos Negócios da França no Brasil fez
jus ao nome que tinha. Através de demoradas e efetivas negociações com
políticos, parlamentares brasileiros e a elite industrial e latifundiária,
ele conseguiu sanar o problema, assinando em dezembro de 1917 um
“convênio” entre os dois governos. Os outros signatários são Antônio
Carlos, Ministro das Finanças, Antônio Lage e Paulo Prado, conhecido
cafeicultor paulista, futuro mecenas do Modernismo e autor do clássico
Retrato do Brasil (1928).
Pela “dívida” da Brazil Railway, o Brasil se obrigava a entregar à França
trinta navios alemães, que tinham sido confiscados pelo governo
brasileiro. Eram embarcações de grande porte que estavam nos portos quando
as relações diplomáticas entre o Brasil e a Alemanha foram rompidas. Em
“troca”, a França se comprometia a nos comprar dois milhões de sacas de
café, transação que seria feita sob a responsabilidade da firma Prado
Chaves, de São Paulo, cujo diretor era Paulo Prado. A firma exportadora de
café atravessava então comprometedora situação financeira. Tadeu Nogueira,
secretário da Associação Comercial de Santos, enviará à firma, no dia 2 de
janeiro de 1918, efusivo telegrama em que cumprimenta o seu diretor pelos
benefícios que resultarão da aquisição pela França de dois milhões de
sacas de café.
Não é difícil traçar o perfil do múltiplo Paulo Prado. Ei-lo tal como foi
esboçado por Maria Teresa de Freitas em livro de homenagem ao escritor
Blaise Cendrars: “Important homme d’affaires pauliste du début du siècle,
devenu dans les années 20 le “roi du café” brésilien, Paulo Prado était
aussi – voire surtout – un moderniste au Brésil, un des promoteurs de la
Semaine d’Art Moderne de 1922, l’auteur de maintes entreprises culturelles
et politiques de la plus haute valeur dans le panorama socio-culturel et
historique de l’époque”.
1917, Rio de Janeiro. No percurso histórico paralelo à Exposição de Anita
Malfatti em São Paulo, encontra-se a viagem de Claudel e Milhaud ao Rio, o
apoio dado pela França ao Brasil na luta a favor dos aliados, a solução
que os diplomatas encontram para saldar a “dívida” brasileira e salvar a
economia cafeeira do brejo em que se encontrava no porto de Santos. Se
continuarmos a perseguir a associação do café ao Modernismo brasileiro e
acatarmos a companhia de Alexandre Eulálio, encontraremos pela frente um
outro e importantíssimo personagem no desenvolvimento do nosso principal
movimento de vanguarda, o franco-suíço Blaise Cendrars. O mesmo Paulo
Prado, signatário do convênio e diretor da firma Prado Chaves, será o
responsável financeiro pelas três importantíssimas viagens que o poeta fez
ao Brasil. Em carta que Cendrars escreve ao amigo Prado, logo depois da
sua primeira viagem em 1924, lê-se: “... tout ce que je fais, je le fais
en somme sous vos auspices”.
Não se pode esquecer que, durante a primeira estada de Blaise Cendrars
entre nós, os modernistas se adentraram na Semana Santa pelo interior do
Brasil, em viagem a Minas Gerais, a fim de conhecer e mostrar ao
estrangeiro as cidades históricas da região. O crítico Brito Broca foi
quem primeiro chamou a atenção para “a atitude paradoxal” dos viajantes
modernistas em 1924. Escreveu ele: “São todos modernistas, homens do
futuro. E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os
espíritos conformistas, o que vão eles mostrar? As velhas cidades de
Minas, com suas igrejas do século 18, seus casarões coloniais e imperiais,
numa paisagem tristonha, onde tudo é evocação do passado e, em última
análise, tudo sugere ruínas”.
A leitura da implantação do espírito de vanguarda nos trópicos não deve
camuflar o modo de vida paradoxal do Modernismo, pelo contrário deve
exibir a “lógica interior” do movimento. Continua Brito Broca: “O divórcio
em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu da realidade
brasileira fazia com que a paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos
dos modernistas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto,
do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam”. Nas montanhas
de Ouro Preto, o primitivismo de Picasso encontrava o autodidatismo de
Aleijadinho, sob o olhar matreiro de Blaise Cendrars.
Uma leitura cuidadosa do Journal de Paul Claudel, no mesmo ano de 1917,
fará entrar na lista dos antecedentes do movimento modernista um outro
personagem francês, que terá enorme poder de decisão no momento da
formação moderna do pensamento universitário brasileiro. Trata-se de
George Dumas, que Claudel encontra no Rio de Janeiro em julho/agosto.
George Dumas é filósofo e médico e estava no Rio de Janeiro para a
fundação de um instituto franco-brasileiro, se não me engano o Lycée
Français, da rua das Laranjeiras, de tão grata memória para tantos
cariocas e brasileiros. A passagem em questão do Journal é comovente e
vale a pena ser citada, como complemento ao clima da época. Claudel relata
parte do diálogo com Dumas, em particular o momento em que este fala de um
antigo aluno “d’une magnifique intelligence et d’un grand avenir”, que
tinha lhe dito: “Je plains ceux qui n’ont à donner que leur vie pour la
France”. Esse aluno tinha perdido a vida na guerra européia.
Por ocasião da fundação da Universidade de São Paulo, será George Dumas o
professor a ser acionado em Paris pela elite paulista a fim de escolher
jovens pesquisadores que se interessavam por participar do quadro de
professores estrangeiros da instituição. Segundo o relato de Claude
Lévi-Strauss em Tristes trópicos, ele foi despertado num dia de 1934 por
um telefonema de George Dumas, que o convidava para ser professor de
antropologia em São Paulo, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
Relata Lévi-Strauss: “Minha carreira decidiu-se num domingo do outono de
1934, às nove horas da manhã, com um telefonema. ‘Você continua com
vontade de fazer etnografia?’ ‘Sem dúvida!’ ‘Então, apresente sua
candidatura para professor de sociologia da Universidade de São Paulo. Os
arredores [faubourgs] estão repletos de índios, a quem você dedicará os
seus fins de semana’”
Antonio Candido relaciona o momento de fundação da USP – bem posterior em
data, aclaremos – ao Modernismo inicial. O momento, diz ele, é o da
“rotinização do Modernismo”. Aos poucos se transformava “em padrão de uma
época o que era considerado manifestação de pequenos grupos vanguardeiros.
[...] O excepcional se torna usual, tendendo o que era restrito a se
ampliar”.
Prolonguemos nossas digressões sobre a viagem de Paul Claudel e Darius
Milhaud por caminhos mais amenos. Qual é a relação que os dois
intelectuais mantiveram com o meio sócio-cultural brasileiro? Será que os
encontros interculturais proporcionados por artistas em viagem ao
estrangeiro abrem um campo de possibilidades que torna possível e
produtivo o congraçamento entre pares até então desconhecidos? Será que a
viagem ao estrangeiro é a ocasião para que se realize um intercâmbio
rentável para as partes, onde os elementos de troca de uma e da outra
cultura encontram atores carentes e permeáveis? Seriam diplomatas, em
outro e mais gratuito sentido, esses artistas? Será que, dessa operação e
graças à sensibilidade e gênio dos envolvidos, elementos culturais
heterogêneos se combinaram em produtos homogêneos e híbridos, originais e
ricos de seiva?
As respostas às perguntas têm uma premissa inicial contraditória. Dois
conterrâneos, Claudel e Milhaud, convivendo diariamente no mesmo local de
trabalho, parceiros em antigos, novos e futuros trabalhos artísticos, não
se intrometem da mesma forma no novo meio sócio-cultural. Não reagem de
maneira semelhante às manifestações que presenciam e não se interessam
pelos mesmos intelectuais e artistas brasileiros.
À maneira do xará Paulo Prado, amigo e parceiro nos negócios e autor do
célebre Retrato do Brasil, Paul Claudel considera o país “um paraíso de
tristeza” [sic]. Mal pisa o solo carioca, já foge para a região serrana,
onde passará muitos dos seus dias, ao lado do casal de embaixadores
ingleses. O calor senegalesco de fevereiro foi a desculpa para fugir do
Rio. Anota que os poetas brasileiros são “uma pequena coleção de
canarinhos mecânicos”. Mário de Andrade não dirá melhor sobre os nossos
parnasianos. O português é “uma língua que zumbe e assobia”. Diverte-se
com causos como o do milionário analfabeto que manda o secretário ler a
carta a ele dirigida, exigindo antes que o serviçal tape os ouvidos com
algodão. Aprende um provérbio e o anota em português: “Deus escreve
direito por linhas tortas”. Este aparecerá como epígrafe da peça Le
soulier de Satan. Delicia-se com a expressão “estar metido em camisa de
onze varas” (anotada em português), talvez em virtude da etimologia
religiosa da expressão e porque ele próprio, desde o dia em que pisou o
solo brasileiro, estivesse metido numa dessas camisas.
Ao mesmo tempo, lê e comenta trechos complexos da Bíblia Sagrada e
entremeia as leituras com recepções às grandes figuras da arte européia
que nos visitam, fugindo da guerra. O famoso Nijinski e a companhia russa
de balé, Anna Pavlova e o pianista Arthur Rubinstein. Recebe-os a todos na
Legação da Rua Paissandu, transformando passageiramente o “salão de
costura” em palco para espetáculos privados. Depois de uma noitada
carnavalesca, frenética e alegre, no restaurante Assírio, localizado no
porão do Teatro Municipal, anota no Diário: “mulheres dançam de maneira
convulsiva e de repente partem da orquestra cantos e risadas de condenados
[damnés] que nos dão frio na espinha”. Mau humor maior, impossível.
Influenciado pela presença de Nijinski, escreve um balé intitulado
inicialmente L’homme et la forêt, depois sintomaticamente mudado para
L’homme
et son désir.
Já Darius Milhaud escreve que chega ao Rio de Janeiro na época certa. O
carnaval sopra “um vento de loucura” sobre a cidade. Entusiasma-se com a
beleza da Rua Paissandu e com os cocares das palmeiras esguias. Admira os
cordões, o corso, os desfiles dos clubes carnavalescos e, em qualquer
praça da cidade, as danças populares. Também freqüenta os bailes
carnavalescos dos salões elegantes. Anota o sucesso do samba de Donga,
“Pelo telefone”, eleito o melhor do ano. Observa: a música é tocada pelas
bandas militares, os orfeões municipais, as pianolas e os gramofones. É
assobiado e cantado por todos na rua.
Milhaud fica fascinado pelo ritmo da música popular brasileira. Compra uma
grande quantidade de partituras de maxixes e tangos (nome pelo qual era
conhecido o chorinho na época). Surpreende-se com o ritmo negro e
sofisticado: “há na síncopa uma suspensão imperceptível, uma respiração
nonchalante, uma parada ligeira”. Na Legação, ele tira do piano maxixes e
tangos, para concluir: “meus esforços foram recompensados”. Admira Ernesto
Nazareth, que toca piano em porta de cinema. Anota: “seu toque fluido,
impalpável e triste me ajudou também a melhor conhecer a alma brasileira”.
Por outro lado, conhece o diretor do Instituto Nacional de Música, o
maestro Henrique Oswald. Na casa deste, encontra não só um outro grande
maestro, Francisco Braga, ex-aluno de Massenet, como também um casal de
jovens músicos, hoje praticamente desconhecidos do grande público, Oswald
Guerra e sua esposa Nininha. Filha do diplomata Leão Veloso, Nininha é
“excelente pianista”. Nos salões da burguesia carioca, Milhaud deixa-se
impregnar por um ambiente musical europeizado, apaixonado e arrebatador.
Para escândalo de algum contemporâneo seu, confessa que é iniciado [sic]
por Nininha na música de Erik Satie, compositor que, em 1917, conhecia
“muito imperfeitamente”. A quatro mãos, toca com Nininha várias
composições e assinala que ela “decifrava admiravelmente bem toda a música
contemporânea”.
Por indicação de um colega parisiense, André Messager, Milhaud se
interessa também pela música do ítalo-brasileiro Glauco Velásquez
(1884-1910). Tanto pela construção como pelo lirismo, aproxima-a da música
composta por Guillaume Lekeu. E anota estranha semelhança: “os dois
morreram aos 26 anos de idade”. Sai à procura das partituras de Velásquez
e o interpreta durante uma conferência que faz no Liceu Francês.
Quando deixa o Rio de Janeiro em fins de 1918, Milhaud anota: “Estava
feliz com a idéia de voltar a Paris, de rever parentes e amigos, mas minha
alegria estava marcada por certa nostalgia: amava profundamente o Brasil”.
Segundo Alexandre Eulálio, “Darius Milhaud foi sem dúvida o primeiro
intelectual a despertar a curiosidade de Cendrars pelo Brasil”.
O resto – aliás, o imenso e notável resto – está nas obras originais de
Darius Milhaud, como a composição Le Boeuf sur le toit (1919), tendo como
inspiração inicial o maxixe O boi no telhado..., de Zé Boiadero. Essa
composição musical, por seu turno, servirá para que Jean Cocteau idealize
um balé extravagante de mesmo nome, cujo título será emprestado a um
cabaré parisiense, que será famoso por lá se tocar e dançar maxixes,
tangos argentinos, foxtrotes, one-steps e charletons. Milhaud também
compôs a suíte Saudades do Brasil, onde cada composição leva o nome de um
bairro carioca. O popular, sofisticado e complexo adubo musical,
encontrado na cidade do Rio de Janeiro da época, fez também florir, entre
nós, os gênios de dois dos seus melhores amigos brasileiros, Pixinguinha e
Villa-Lobos.
SILVIANO SANTIAGO,
romancista, contista, poeta, tradutor e um dos mais reconhecidos críticos
literários do Brasil, nasceu em 1936, em Formiga, Minas Gerais.
Aproximou-se da crítica de arte a partir do cinema, publicando em 1954
O filme musical. Já na juventude, idealizou e colaborou com diversos
periódicos literários de vanguarda. Durante sua vida, lecionou e pesquisou
nas mais várias universidades, passando pelo Canadá, Novo México, Indiana,
Yale, Sorbonne e algumas brasileiras, como PUC e UFF. Ganhador de
vários prêmios, tanto por seus romances quanto por sua crítica, tornou-se
um nome de referência na crítica brasileira, com livros como Carlos
Drummond de Andrade (1976), Uma literatura nos trópicos (1978),
Vale quanto pesa (1982), Nas malhas da letra (1989). Na
ficção, publicou Em Liberdade (Prêmio Jabuti de Romance),
Histórias mal contadas (2005), entre outros.
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