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márcio-andré
Pound, Heidegger e tradução
Ezra Pound foi um grande sujeito. Em muitos sentidos. Foi um grande poeta e grande divulgador da poesia de seu tempo, apesar de suas posições políticas, que mais pertenciam ao seu lado esquizo-napoleônico e suas ilusões de grandeza econômica. Apesar disso, ajudou muitos artistas, alguns que nem conhecia pessoalmente, simplesmente para que não parassem de produzir. Convenceu seu pai a vender selos raros para pagar a operação de vista de Joyce; correu atrás de bolsas do governo para que Eliot se dedicasse somente à escrita; publicou dezenas de poetas desconhecidos que hoje fazem parte do cânone. Nesse sentido, foi um grande amante da arte e um grande visionário, tal como foi um grande conhecedor de literatura, ressuscitando para a modernidade toda uma tradição que ameaçava perder-se no esquecimento, de Li Po a François Villon. Poeticamente, foi fundador de uma escola que está presente, ainda que bem no fundo, nos versos de qualquer poeta contemporâneo. Mas, sobretudo, foi um grande tradutor, e suas contribuições às teorias da tradução são tão importantes quanto sua obra literária. Ouso dizer que, num sentido amplo, foi pioneiro, ou seja, carregou a tarefa de colocar a tradução, da maneira mais radical, em conformidade com as transformações de seu tempo. Tempo este, que é o fundamento de nossa própria época.
Aí vocês me perguntam: o que
isso tudo tem a ver com a tradução? Acontece que Pound formulou suas
diversas modalidades críticas como exercícios práticos e criativos e entre
elas estava incluída a tradução. Estes iam desde a discussão do fazer
artístico e o exercício de estilo até o ato de musicar, compor e traduzir
(no caso, re-criar) poemas. Ora, práticas como estas se aproximam muito
mais do processo artístico, e é preciso que o crítico/tradutor seja, antes
de tudo, artista/poeta, tendo em conta que se torna fundamental um
envolvimento e uma interpretação da obra original para ser finalmente
re-criada na língua/linguagem desejada. Para isso é necessária ao tradutor
uma abertura para o que Heidegger dizia ser a poiesis que opera na
obra, pois a leitura se faria justamente na ação do leitor enquanto escuta
do silêncio na voz dessa obra. Da mesma forma, a tradução, para Pound, era
fruto do confronto direto entre uma escuta e uma fala, tensão pela qual o
tradutor se daria na recriação, como diálogo.
Haroldo de Campos falava da
tradução poundiana como uma arte ativa de traduzir, o que significava
tentar recompor no idioma, senão a melopéia, pelo menos, quanto possível,
a fanopéia e a logopéia do texto original. Segundo ele, para Pound, a
tradução que merecia ser equiparada ao original era aquela que se
autonomizava, tornando-se “outra” em relação a uma tradução meramente
auxiliar. Tradução como traição, o que obrigava a desfazer o fantasma de
uma fidelidade ao original, fosse semântica, ou mesmo formal. Importava,
antes de tudo, a visão do tradutor e, por vezes, seu próprio estilo
poético.
As bases desse método de
tradução, que os concretistas brasileiros, na onda classificatória de
Jakobson, chamaram de transcriação ou recriação, Pound demonstrou nas
próprias traduções, como o próprio método propunha. Apesar de equivocado
em muitos pontos como pensador da literatura, ele acertava ao acabar com o
ideal metafísico de uma máquina semântica, que teria a capacidade de
traduzir um poema para uma outra língua, somente substituindo sua
estrutura e onde o tradutor não fosse nada mais que o operário lingüístico
que atuasse nessa transposição.
A proximidade da crítica
tradutória de Pound com o pensamento de Heidegger é bem clara, se
percebermos que ambos propõem que o tradutor/leitor, na leitura, alcance,
por meio da interpretação (escuta), o vigor que se manifesta na obra.
Assim, um tradutor estaria muito mais próximo de um violinista que
interpreta uma peça de Bruch, do que de um pesquisador diante de seu
objeto de estudo. O transcriador seria justamente aquele que apreende, com
sua própria particularidade, a essência da poesia na sua particularidade
própria. As diferenças da obra enquanto que sua própria diferença.
Heidegger define belamente o
ser humano como aquele que deve testemunhar o que é. E é nesse
testemunhar, como atestação de sua presença, do seu pertencimento à Terra,
que ele se manifesta enquanto linguagem, e então, poesia. Num ensaio sobre
Hölderlin, ele diz que a essência da linguagem não se esgota no fato de
ser um meio de comunicação. Muito menos seria um instrumento do homem.
Para ele, a linguagem é o que, antes de tudo, garante a possibilidade de
se encontrar em meio à abertura do ente. E se levarmos em consideração
que, segundo suas palavras, é a própria poesia que começa por tornar
possível a linguagem, não o contrário, fica claro que a poesia, enquanto
manifestação fundadora, enquanto essência da essência da linguagem, não
pode ser simplesmente traduzida por uma transposição abstrata, mas
unicamente por meio de uma abertura à escuta essencial da obra. O
poder-ouvir e o poder-dizer, que permite o diálogo (e este diálogo
autêntico, que somos nós mesmos, se dá na, e pela nominação dos deuses e
no fato de que o mundo se torna palavra) deve ser, dentro da proposta da
transcriação, uma prática, isto é, um saber-ouvir a obra e re-nomeá-la
através de um saber-dizer. Assim, no novo poema permanece não só a
essência do poema original, mas a própria essência do tradutor enquanto
fundamento, pois ele reescreve o dizer originário do poeta original
dizendo originariamente, enquanto escuta. Em um certo momento de seu
texto, ao falar do poeta, Heidegger parece até falar do tradutor poundiano:
“O dizer do poeta (tradutor) consiste em surpreender esses
signos (da obra original) para em seguida significá-los ao seu povo
(através da recriação). Esse surpreender os signos é um recebê-los, mas
é também, ao mesmo tempo, um dá-los de novo; pois no “primeiro signo” o
poeta já discerne também o Consumado, e coloca corajosamente na sua
palavra o que ele percebeu, para pré-dizer o Ainda-não-consumado”. O
tradutor é, como o poeta, aquele que surpreende os signos e o pré-diz,
porém, a partir de signos já pré-ditos.
Assim, segundo outros
princípios que não os do antigo pensamento metafísico, a crítica poundiana
instaura uma nova maneira de compreender a tradução. Pound, que
simpatizava com o pensamento mítico e se classificava um pagão, não
revolucionou somente a tradução. Ele foi o primeiro que de maneira mais
evidente afastou de vez a imagem do poeta como aquele que expressa seus
sentimentos. A transcriação inclusive tinha muito a ver com suas personae,
as máscaras que ele usava para escrever poemas à maneira de outros poetas,
expurgando qualquer tipo de subjetivismo. Assim, a tradução, como a
física, deixava de ser linear e causal. Não parecem mais correr numa linha
cronológica sucessiva, mas se perdem na abertura infindável da pedagogia
da ambigüidade de Bachelard, fruto desse novo real que se inscreve num
devir-ser. Se não há uma língua abstrata que reine como um ideal para uma
tradução autêntica, o próprio conceito de originalidade parece discutível.
E se, na física moderna, ao nível da partícula, o tempo circula
simultaneamente nos dois sentidos, futuro e passado, se um corpúsculo só é
enquanto devém, e se o tradutor é visto aqui como um outro escritor ou
poeta, poderíamos nos perguntar muito seriamente sobre qual é a origem da
obra traduzida. Seria, por exemplo, a Ilíada de Homero realmente o
original que Haroldo de Campos traduziu, ou uma possível versão de
diversas traduções existentes? Ou, mais ainda, a síntese grega de todas as
outras que foram escritas em outras línguas?
Foi Einstein quem disse que a
imaginação é mais importante que o conhecimento. Nesse sentido, as
traduções do poeta americano abrem mão de uma tentativa de fidelidade e se
lançam no imaginário, levando corajosamente onde nenhum tradutor jamais
esteve. Suas traduções foram muito criticadas, não compreendidas. Ele não
conhecia bem muitas das línguas nas quais se aventurava, mas, segundo
Borges, com isso ele refletia as formas inatingíveis e não o fundo, já que
o essencial do verso, para este, é sua entonação e não seu sentido
abstrato. Poderia citar por horas diversos exemplos de como Pound de fato
foi aquele que trouxe à tradução esse novo olhar da hermenêutica e da
física. Mas Cummings encerra isso muito melhor, ao compará-lo com Einstein
na famosa frase: “ele (Pound) foi para a poesia desse século o que
Einstein foi para a física”.
MÁRCIO-ANDRÉ é poeta, contista, músico e fotógrafo amador, autor apócrifo dos livros Movimento Perpétuo e Chialteras. Faz mestrado em Poética na UFRJ pesquisando arte, pensamento oriental e outras esquisitices, e integra o grupo Arranjos Para Assobio, de poéticas experimentais (http://arranjos.confrariadovento.com). Atualmente trabalha na tradução de poesias de Arnold Flemming, Serge Pey e Bernard Heidsieck e edita as revistas literárias online Confraria e Improvável (www.improvavel.com). Suas páginas são www.marcioandre.com e http://marcioandre.confrariadovento.com
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