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federico lavezzo
relato real de uma experiência real
mecanismos
Este ferro-velho em especial supõe certa delicadeza nas incisões, e algo
de intuição, e de sã curiosidade, para não rasgar algo essencial na
operação de separar veículo de conteúdo, feito de intenção, essência de
substância. Algo como medir o peso do crepitar que produz a pua em contato
com o sulco de pasta ou vinil, e da música inscrita. Diferenciar disco /
pua / motor giratório da composição, embora tudo esteja tão ligado que
quase não seja possível evocar o bar união separado do sufoco da piaf no
mar de frituras do velho toca-discos, claro, porque os discos provêm de
uma pilha adjacente, tanto ou mais alta que o aparelho, topos fora de suas
capas, um em cima do outro, contaminados pelo mesmo pó e pelos mesmo anos.
Algo como um “cigarro de hoja” recém acendido. Na fumaça viaja o sabor do
tabaco, a frescura de suas folhas secando-se à sombra, e a iminência de um
combate surdo, existencial, entre a ansiedade que manda tragá-lo e a
vontade que vai em busca de um sabor, que mais do que se apreciar se
lembra logo de expulsar a fumaça quase intacta. Se ainda é de tarde, e faz
frio, até se pode descobrir na luz refletida certa diferença entre as
fumaças. Por um lado, a que sai da brasa e a funde em uma coroa compacta
de cinza, ligeira e azulada, sem outro encanto além de sua ascensão em
curvas dinâmicas, em expansão. Por outro, a que ainda escapa do outro
extremo, o íntimo, no qual operam a boca e a sucção, quando apenas se
separou o cigarro dos lábios. Esta outra é como o giz, branca e densa. É
fácil perceber que da intersecção da primeira fumaça e a matéria do
cigarro se obtém uma fumaça segunda, pesada e lenta, carregada de sabor e
evocações. E também o cigarro como metáfora mais ampla, do que pulsa.
Quanto durará entre os dedos, quanto tempo há de levar a ansiedade a sacar
a brasa, aproximá-la da boca até matar o desfrute. E em um cinzeiro de
madeira tostado pelo uso, um montinho discreto de cinzas, resíduo de
tabaco, ou de tempo, ou de alguém mesmo.
relato real de uma experiência real
Uma e a mesma noite fresca, estrelada, propõe agora falar da sorte, da
existência disso que se chama acaso, e do influxo do destino. Falar dessas
ocasiões em que variáveis pouco afeitas à concorrência em um feito, de
fato concorrem, e então acaso é o termo para expulsar o desconcerto ou
encher o vazio. Uma noite real, uma experiência real: a de haver vivido na
própria carne os assuntos da sorte, do acaso, na partilha anônima de
bilhetes de ônibus entre os passageiros. No aborrecimento cotidiano de
viajar de ônibus dos mesmos lugares a idênticos destinos, mais ou menos
nas mesmas horas – os mesmos rostos desconhecidos, os trajetos, os pontos
– a máxima aspiração pode consistir em obter, pelo pagamento da passagem,
um bilhete em especial, levado à excepcionalidade por certa propriedade
simétrica que o faz legível nas duas direções. Certo é que todos os
bilhetes são indivíduos únicos e excepcionais, um número de cinco dígitos
outorga-lhes esse caráter, pelo que se poderia esperar como uma raridade
que na sorte das viagens, um número qualquer fosse repetir-se. Mas não, a
expectativa está posta nos capicuas, e de qualquer maneira, na margem de
divergência capicua de cada bilhete, para trás ou para frente, e então a
viagem será puro cálculo mental de quantos passageiros mediaram entre este
número esquálido e o que provoca surpresa e se anseia possuir. Um relato
no qual chega a ocasião de subir no ônibus e se acredita ver, no gesto
autônomo do motorista que corta e recebe o pagamento, um número especial,
e logo na metade do corredor perceber que se está na posse de um bilhete
contíguo ao capicua, este é o que possui um homem com uma pasta tão fina
que parece vazia, e confirmar em seu rosto sem surpresa que não o sabe nem
o saberá nunca, porque dobrou o papelzinho sem olhá-lo como faz quase todo
o mundo. Uma anomalia, o destino esquivo que outorga o prêmio a quem não o
espera nem o percebe, negando-se a quem o deseja, por um espaço na fila –
e múltiplas derivações em relação a essa posição, ter chegado antes do
sujeito podendo tê-lo feito depois. Até aqui, um relato sucinto do
sucedido, roçado apenas pelo brilho do atípico. O que se segue no entanto
configura uma aberta zombaria da fortuna, que converteu desde então o
protagonista do relato em um observador permanente de quem sobe depois
dele, a rotina do transporte transforma os passageiros sem nome em um
grupo bastante definido, outros que vão e vêm, e coincidem em
encontrar-se.
Bastará dizer que o passar do tempo não foi óbice para não esperar algo
mais dos bilhetes, mas nunca que uma tarde torne a suceder, ter o número
prévio, e que já não fique ninguém na fila de subida, e então seja fácil
na próxima parada ver o rosto do afortunado ignorante que dobrará o
papelzinho, como quase todo o mundo. Muito menos que fosse o mesmo homem
débil da pasta vazia, com sua cara de nada e sua parcimônia na busca de um
assento disponível.
reunião
Acaso suceda, acaso esteja sucedendo que a noite fresca do parque seja
franca madrugada, o ar filtrado por cristais límpidos e as estrelas
empenhadas em afirmar seus brilhos no fundo escuro das copas. O rumor
agreste indecifrável fundido com as notas que chegam do piano próximo,
assomado à galeria. Os europeus fazem-no com palavras precisas, o francês
quase argelino adianta impressões sobre uma crônica que a vida urbana
moderna, assinalada em seu desdém por uma advertência em forma de
isolamento ou refúgio ou peste. Ao seu lado o italiano confessa sua
preferência pelas memórias de um viajante preso em seu regresso do
oriente, e da sua própria versão desse livro de maravilhas, que lhe ocorre
o relato do vasto império a partir de suas cidades, fosse fora do tempo,
todas com nome de mulher. Por sua vez os cariocas introduzem cores à
conversa, o de Laranjeiras fala enquanto desenha, à luz de uma vela, os
traços de uma arquitetura que subverte a dureza do concreto, e sonha em
voz alta com uma cidade ex nihilo que parece uma sinfonia plástica
para o planalto. O da Tijuca pelo contrário não se moveu do piano por toda
a noite, participa dali, a pouca distância, em companhia de um copo em que
nunca falta uísque nem gelo. Fuma e compõe um ritmo novo, e ali
pendura suas palavras com uma suavidade, com um encanto. Três línguas em
uma só, como se o jogo dialético tivesse sido feito só com as essências. A
conversa recomeça ou se detém se razões, já se disse. Inseparáveis da
noite, e de tudo o mais, o acaso, o tempo, a cidade, os dicionários, o
firmamento, os mecanismos sutis que governam a existência, o vinho e os
bancos no parque.
Acaso ocorra, ou esteja ocorrendo que os últimos goles coincidam com uma
breve claridade do céu, e o sorriso inapagável que toca o piano eleve seu
copo até os outros em um gesto de dispô-los a escutar o que sai de seus
dedos, são as águas de março fechando o verão,
é pau, é pedra, é o fim do caminho
é um resto de toco, é um pouco sozinho.
Traduzido
por Fábio Aristimunho
FEDERICO LAVEZZO
é
escritor e tradutor, nascido em Córdoba, Argentina, em 1968.
Autor dos livros Particulares (2001) e Generales (2004).
Traduziu 15 cuentos brasileros / 15 contos brasileiros,
antologia bilíngue organizada por Nelson de Oliveira em 2007 com o apoio
do Consulado Geral do Brasil em Córdoba, e El mal que se adivina,
de Adriana Vianna. Atualmente é encarregado do Centro Cultural CPC
Argüello, na cidade de Córdoba e prepara uma antologia bilíngüe (português-espanhol)
com contistas do Rio de Janeiro, cujas questões sejam a matéria da
própria cidade.
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